Pessoas interessantes

Quando eu estava na sexta série, resolvi desenhar um homem na aula de artes. O meu amigo Victor, que era filho de desenhista, zombou do meu desenho dizendo que eu não sabia nada de proporções. A boca estava muito grande, o nariz era torto e um olho estava fora do plano em relação ao outro. Imediatamente a critica dele foi repetida por mais uns três baba-ovos.

Eu fiquei puto. Minha vontade na hora era de meter o estilete na garganta daquele cara e puxar sua língua para fora, mas não sem antes enforcá-lo com seus próprios intestinos, mas não sem antes fazê-lo engolir seus globos oculares, mas não sem antes obrigá-lo a chupar o próprio bilau e mastigar os próprios testículos, mas não sem antes… Ok, você entendeu que eu fiquei puto.

Resignado, apaguei meu desenho e me esforcei para fazer o desenho na proporção. Para Victor, tudo deveria ser feito na proporção artística, onde o “Belo” e sua proporção áurea devem ditar o que existe. Afinal, para Victor, a arte deveria ser a representação do belo.

Eu era muito burro para argumentar com ele que seu “mestre supremo”, o Leonardo Da Vinci era um admirador da desproporção:

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É curioso que esse pequeno momento existencial tenha ocorrido justo na aula de artes, onde isso poderia ser maravilhosamente explorado pelo professor, se não fosse o fato daquela mulher não estar absolutamente nem aí pra nós.

Eu confesso que não sei até que ponto que aquele momento da minha infância me fez desejar fazer monstros, coisas horrendas e disformes que eu sempre tenho feito. Eu acho curioso que ainda hoje, depois de grande, vejo tanta gente na busca eterna pelas formas simetricamente perfeitas na arte, como se só a proporção e a beleza existissem. Você abre uma revista de moda e só vai ver mulher bonita. Isso é estranho, porque se pensarmos com a cabeça regulada pela revista de moda, podemos achar que só tem mulher bonita no mundo.  Isso explica esse frenesi de plasticas e intervenções que nem sempre dão certo.

Até mesmo a televisão. Se você assiste uma novela de hoje, e comparar com novelas de vinte anos atrás, vai ficar impressionado com a “Taxa de beleza”. A taxa de beleza da novela de hoje deve estar batendo aí em 70% ou mais. Antes não, antes tudo era mais democrático, principalmente as novelas. Quando que um sujeito bom ator mas não exatamente um galã como o Stênio Garcia teria chance no mundo de hoje? Lima Duarte? Qual novela de hoje empregaria o ator Rui Resende, (o inesquecível professor Astromar)?

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Basta olhar o elenco de Malhação e veremos que há algum tipo de regra velada onde “feio não entra”. Pasteurização da realidade, né? Mas o lance é que se você faz um produto só com beldades, o que acontece é que você perde justamente o elemento de contraste.

É tanta beleza, que parece que o mundo está empurrando os feios para debaixo do tapete. Dizem as más línguas que a coisa tá tão grave que até o Belo, que era feio de doer, está começando a fazer jus ao apelido (o que eu tenho uma considerável dificuldade de acreditar) à custa de grande investimento.

Hoje, nos tempos atuais de esquizofrenia social, até falar que uma pessoa feia é feia, dá processo. O que parece inusitado, pois se você diz que uma parede branca é branca, ninguém te processa.

Mas se disser que um negro é negro ou que um gordo é gordo, F-O-D-E-U.

Assim fica difícil. É preciso criar eufemismos estranhos, como “desprovido de simetria estética”, ou chamar essas pessoas de “interessantes”.

Como se ser feio fosse uma coisa pejorativa. Não sei em que momento que “feio” começou a ser considerado uma coisa ruim, só sei que foi assim que aconteceu. O mais estranho de tudo é que a feiura não implica em absolutamente nenhum demérito para o que a pessoa realmente é. Por exemplo, Ronaldinho Gaúcho não joga nem melhor nem pior por sua aparência.  Paulo Coelho venderia mais livro se fosse um galã sem aquela voz e aquele rabinho atrás da careca?

Mas na Tv, no teatro e em tantas profissões ligadas à imagem, ser feio é condenação que te relega a personagens estereotipados (quando seu talento é tão sobrenatural que se impõe à aparência). Mas é curioso, porque esses produtos, novelas, filmes e etc tentam simular a realidade. E no mundo real, tem gente feia pra chuchu!

Se continuar assim, daqui a pouco surge um coletivo do abismo para exigir a bolsa feioso.

Outro dia eu estava na barca olhando para um cara tão estranho, mas tão estranho, que passaria fácil por um alienígena. Eu me lembro de ter pensado que bastava meter um macacão prateado nele que qualquer um acreditaria que tal figura provinha diretamente do espaço sideral.  Daí lembrei de meu episódio com o Victor na aula de artes e em como ele achava que o certo era fazer o desenho proporcional e a vontade que me deu de enforcá-lo com seus próprios intestinos. Imediatamente comecei a rir igual um demente na barca. A mulher do meu lado me olhou com expressão estranha, e ao ver que eu ria olhando para o cara bizarro, me olhou com raiva, pois certamente logo pensou que eu estava rindo do pobre “homem interessante”.

“Pessoas interessantes”

Bom, por mais curioso que possa parecer, há quem recuse a beleza em busca de pessoas estranhas. Há um fotografo chamado Bruce Gilden, de Nova York, que gosta de fotografar retratos de pessoas, que são ignorados por causa de sua aparência. Para ele, essas pessoas são “visualmente interessantes”. Em seu trabalho, ele muitas vezes usa flash à luz do dia, para aumentar o drama. Em seu último livro intitulado “face”  ele mostra retratos de transeuntes do Reino Unido e os EUA.

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Certamente alguém vai se perguntar até que ponto isso não é uma versão moderna de um freakshow, como os do século XIX e início do século XX, em que pessoas disformes e com estranhas características eram exibidos para alguém fazer dinheiro. É algo as e pensar. Por outro lado, há o argumento de que esse discurso se constrói sob uma ideia de que as pessoas estranhas são dignas de pena e não devem ser expostas, não devem ser vistas e se puderem ficar num quarto escuro no subterrâneo, tanto melhor.

Há muita gente esquisita nesse mundo. Já postei aqui até de uma agência de modelos focada especificamente em pessoas feias. Talvez exista alguma luz no fim do túnel para quem não esteja de acordo com os ideais renascentistas do Victor.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Beleza é uma questão de ponto de vista e ocasião, como dizia meu avô! O cara do rádio dizia agora à pouco que beleza só é importante nos os primeiros 15 minutos. Acho que estava falando de um ralacionamento por interesse, rs.

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