O triste fim de uma árvore

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Era uma vez uma rua repleta de grandes e antigas árvores.

Num país que tinha o seu nome batizado por uma árvore.

Talvez elas tivessem nomes. Nomes que só elas soubessem, ou que só elas poderiam pronunciar, tal qual as baleias e as lagostas.

A rua era cheia de árvores que formavam um túnel, esticando seus galhos, dando-se as mãos.  Testemunhas silenciosas do tempo.

Elas cresciam juntas, irmanadas no vento e nas gotas de chuva que desciam dos céus, molhando seus galhos, trafegando em suas vias e descendo até o solo.

Viram milhões de pássaros pousarem em seus galhos, e aninharem-se nelas. Sustentaram milhares de parasitas de todos os tipos que bebiam da seiva delas e conviviam numa relação de amor, ódio e respeito.

As árvores estavam lá para trazer a sombra que beirava a escuridão, onde felinos amantes haviam se escondido em momentos de sofreguidão.

Sob elas passaram carros motos, bicicletas e pessoas. Crianças correndo, apostando corrida de velocípede, e antes que percebessem, dirigindo.

E ali elas ficaram, esperando o sol girar na imensidão do céu, recebendo a chuva quando vinha e derramando-se em paciência e folhas, quando ela não vinha.

 

Então cortaram a árvore.

 

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A máquina traçou suas lâminas no tronco e em meio ao cheiro de óleo e as lascas de serragem que voaram pelo ar, ela tombou.

Tombou como morre um mártir, em silêncio impávido, enquanto suas irmãs choravam, emudecidas no choque.

Elas sabem que aquele será seu fim. A cidade ao redor crescera. A sua sombra tão desejada de outrora é agora ambiente de medo e temeridade.

Não importa que elas tenham centenas de anos de vida. Não importa nada.

A prefeitura quer, a prefeitura corta.

O homem se exime, “foi o patrão que mandou cortar”.

O patrão, essa figura tão invisível quanto as lagrimas dos troncos, que não pingam diante da flagelação.

Ninguém prestou atenção quando ela morreu. Indigente, triste, baldia.

O caminhão se foi, levando partes, largando outras.

 

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Somente as formigas do muro notaram o sol num lugar onde ele nunca brilhou.

Só restou o tronco, elevando-se da calçada carcomida.

Um passante que fumava um cigarro deu o golpe de misericórdia.

Enfiou a guimba acesa no monte de serragem.

O que restava daquela vida se foi ardendo lentamente, espalhando o filete de sangue no ar.

 

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O vento sacudiu os galhos das outras árvores e os troncos se curvaram discretamente, numa reverência tardia.

Mas ninguém notou.




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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

      • Hahah Sério??

        Eu ja leio seu blog ha uns 7 anos( ja?!) e nunca tinha comentado aqui, mas como morei a vida toda ali no jardim america e amava andar de bicicleta por essa rua, nao tive como nao me emocionar com esse post lindo! Parabéns por captar exatamente o que sinto em relação a pendotiba e obrigada por me dar esse gostinho de casa x)

  1. Lembrei do trecho de um livro velho…
    “Eu era uma bétula, esbelta na minha brancura no meio de um prado, mas não tinha nome para aquilo que eu era. As minhas folhas bebiam energia da luz do Sol, que perpassava através delas e lhes fixava o verde resplandecente. As minhas folhas dançavam ao vento, que tirava melodias dos meus ramos como se eles fossem uma harpa. Mas eu não via nem ouvia. Os dias, já a encurtar, deram-me um tom de mel-queimado; a geada acabou por me desfolhar, deixando-me nua; a neve estendeu-se em torno de mim durante a minha longa sonolência. Depois Orion perseguiu a sua presa para além deste firmamento e o Sol dirigiu-se para o Norte para brilhar sobre mim e me despertar. Mas de nada disto eu tinha percepção.
    E no entanto eu tudo registrrava, porque vivia. Cada célula dentro de mim sentia de maneira secreta como o céu reluzia primeiro em todo o seu esplendor e depois mergulhava na quietude, como o ar soprava em vendaval ou uivava ou me acariciava num sonho, como a chuva caía fria a tamborilar, como a água e os vermes abriam caminho até às minhas raízes penetrantes, como as avezitas pipilavam no ninho onde eu lhes dava abrigo e tremiam, como a erva e o dente-de-leão me envolviam num amplexo, e como o húmus reverdecia enquanto a Terra avançava na sua rota por entre as estrelas. Cada novo ano que findava deixava gravado um anel no meu corpo, a lembrar a sua passagem. Embora não tivesse consciência disso, eu estava ainda em Criação e fazia parte dessa Criação. Embora não compreendesse, eu sabia. Era Árvore.”

  2. São coisas que as novas gerações não percebem, nao ligam, não dão o valor tanto quanto a sociedade deveria. Os gananciosos deixam esses pequenos tesouros naturais se perderem por conta de algo que chamam de crescimento. Qual definição de crescimento estamos falando, então? Não é de todo positivo, certamente.

    Aconteceu exatamente isso aqui em Itajai – SC há um par de anos. Para fazerem um terminal de ônibus tiraram uma praça e as árvores mais antigas daqui, mesmo sob protestos.

    Os tempos e valores mudaram, Philipe. Suas palavras, mesmo com a intensidade que soam, são somente prosas de pouco volume com pouco impacto na sociedade deturpada… Triste ver isso, além de envergonhado de fazer parte dessa massa, tanto como nação como estando na geração que deveria reagir (nos meus 27 anos).

    Parabéns pelo texto, Philipe! Precisamos de mais lições como esta em nossas vidas!

  3. Esse texto se enquadra perfeitamente em um caso aqui na minha cidade, uma das maiores avenidas da cidade, era praticamente toda arborizada, então com o crescimento comercial da região, a prefeitura resolveu derrubar todas as arvores que la estavam, pra fazer um estacionamento. gigante, praticamente toda a avenida. tiveram manifestações
    contra, mas não adiantou em nada, vai virar tudo concreto mesmo.

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