O homem que não lia livros

Era uma vez, numa terra muito distante, um rei muito rico. Tão rico que nada poderia macular seu poder. Este rei casou-se com uma princesa de um reino nem tão distante assim. E com ela teve filhos aos quais decidiu dar nomes divinos. Com o tempo, os jovens cresceram, e gradualmente, ante os olhos de estupefação dos pobres daquele reino, o mais velho, que um dia seria o sucessor de seu pai na linhagem de homens poderosos, capazes de mover montanhas, não com sua fé, mas com sua vontade, ousou demonstrar que não tinha muito interesse em se tornar um monarca. Preferia manter-se embevecido a fitar-se nos espelhos de cristal do palácio, a cortejar jovens donzelas da corte e cavalgar seu belo garanhão branco pelas estepes.

Quando isso aconteceu, o povo daquele reino se impressionou, e um início de comoção se espalhou feito fogo na pólvora, e quando explodiu, explodiu na forma de uma violentíssima crise de desgosto do rei.

-Pra que a riqueza? Pra que o ouro, os palácios, as terras além de onde a vista alcança? Pra que tudo isso que construí, se meu filho não se interessa em dar continuidade ao meu trabalho? – Perguntava ele, esperando que algum sábio lhe dissesse qual a razão de tamanha maldição. Na esperança de obter uma resposta, o poderoso rei mandou seus melhores soldados saírem pelo mundo e que lhe trouxessem o mais sábio dos homens, que finalmente lhe ensinaria como convencer seu filho a assumir seu destino, sob a coroa que passava de geração em geração.

Passaram-se dias, meses e anos. Todos os dias o rei ia até a janela, na esperança de ver um de seus soldados retornando do fim do mundo. Mas tudo que ele via era seu jovem filho com nome divino, cavalgando seu puro sangue, e admirando seus músculos cuidadosamente torneados nas tranquilas fontes do palácio. E sem que ninguém percebesse, trancado em seus aposentos repletos de ouro e cortinas de veludo, o rei chorava.

Quando o sábio finalmente foi levado pelos soldados, o rei exultou. Correu pelas escadas do palácio na esperança de encontrar-se com um homem velho, de barbas brancas e olhar profundo. Mas tudo que seus soldados haviam conseguido era um homem com aparência de louco, maltrapilho, sujo de lama, sem dentes e tão magro que já parecia morto, embora ainda estivesse vivo. Imediatamente o rei reconheceu que aquele homem devia ser um escravo de algum lugar, dados os grilhões enferrujados ainda presos aos seus pulsos.

O rei com todo seu poder e riqueza, parou na frente do homem estranho. Não disse nada. Incrédulo, o rei esperava que um sábio que deveria ser o mais sábio de todo o mundo já soubesse a resposta antes mesmo de formulada a pergunta.

E então os dois ficaram se olhando em silêncio.

Como o homem não falava nada, o rei rompeu o silêncio com a impáfia do poder.

-Pensei que eras sábio… Não um escravo. – Disse o rei, olhando com superioridade para o homem ajoelhado aos seus pés na sala do trono.

-Pensei que eras um rei… -Respondeu o homem. – E ante a expressão aturdida do rei, o escravo continuou: – …Mas fizestes escravo e traçastes a pior das penas à aquele a quem mais ama.

O rei perdeu o rebolado. Levantou-se do trono e apontou o dedo na direção do escravo.

-Como ousa, escravo? Eu sou um rei bom. Nunca o prendi. Nunca o castiguei. Dou tudo que ele quer, tudo, sem pestanejar. Eu fiz tudo isso para deixar pra ele!

O escravo baixou a cabeça. Olhou as mãos recortadas e os pulsos feridos pelos grilhões da prisão.

-Majestade, nunca fostes rei. Nunca fostes livre. És um escravo como eu fui. E o pior dos escravos, que se torna algoz de sua própria prole. És escravo do povo, dos desígnios ancestrais. A majestade és escrava de teu próprio poder, ao qual bebes com a sofreguidão daqueles que tentam matar a sede na água salobra do mar. Inútil. Quanto mais poder tem, mais precisa.  Eu, não sou nada. Eu sou um farrapo, mas sou livre no pensamento e nos desejos. Não controlam o que posso pensar. Eu não obrigo ninguém a ser como quero que seja, nem vivo a mercê do desejo das pessoas. Minha riqueza é invisível e meu território limita-se às fronteiras dos meus pés. E eu que não espero nada, não construo nada e nada deixarei além dos ossos, desfruto em vida dos pequenos prazeres, mesmo que seja um segundo fugaz na qual não sinto dores.

O rei sentou-se, desconcertado. Olhou nos olhos do escravo.

-Tem razão. Eu sou um escravo. O povo é meu algoz. E eu sou o algoz de meu filho.  E tu… Tu és rei de tua vida, teu destino, teu tempo.- Disse o monarca.

Então, virou-se para o único soldado da guarda imperial que assistia a cena e ordenou.

-Soldado, mate o escravo.

O soldado sacou a espada e num único golpe ceifou a vida do sábio decrépito, que caiu sem cabeça no chão frio da sala do trono.

Então, o rei virando-se para o soldado ordenou:

-Agora traga-me outro sábio… Mas não tão inteligente.

FIM

 

Esta pequena fábula eu escrevi após refletir sobre a estranha condição de Thor Batista. Caso queira saber o que deu origem a estes penamentos tortos, leia a matéria aqui.

Hoje pela manhã, varias pessoas escreviam no Twitter indignadas sobre o jovem, que vive como Tony Stark e tem o físico do Juggernaut (não lembro quem falou isso lá). As pessoas estavam meio incomodadas pelo fato de que o jovem milionário não parece se interessar pela cultura tanto quanto se interessa por malhar, esculpir o físico e frequentar baladas. Thor está prestes a lançar uma mega boate no rio com um investimento de 11,5 milhões, sendo metade emprestado pelo pai, o homem mais rico do Brasil.

Thor orgulha-se do Aston Martin de 1,5 milhão de reais, comprado “com o dinheiro que ganhei na bolsa” – e que obviamente adveio de uma doação do pai.  Vive para malhar, diz nunca ter lido um único livro inteiro em toda sua vida e concluído o ensino médio com supletivo. Talvez por isso, tenha trancado a faculdade no primeiro período porque “achou muito puxado”.

Seu alto padrão de vida, é motivo de ataques, em sua maioria de pessoas estarrecidas com uma suposta “futilidade”. Thor, por sua vez, nega que seja tão mão aberta quanto dizem as más línguas.

“A gente tem uma vida de luxo, sim, mas não esbanjo dinheiro. Conheço gente que torra 60 000 reais numa noite. Eu gasto no máximo 6.000”

Ler sobre a vida de luxo do filho do homem mais rico do Brasil me leva a refletir sobre as prisões invisíveis que permeiam nossa sociedade.

Todos me chamariam de idiota, obtuso, nazista e impropérios  diversos se eu apontasse um jovem negro, magricela, favelado, filho de pessoas pobres e dissesse que é um absurdo ele vencer na vida. Afinal, nasceu pobre, é filho de homem pobre, de mulher pobre. Logo, está obrigatoriamente amarrado a um grilhão invisível que o condena a pobreza, que não se restringirá a ele, mas também a todos os seus filhos, pois “assim é a vida”.

Se eu dissesse uma coisa assim, vocês deveriam me bater com um martelo. Ou talvez com um machado. Mas se pararmos para pensar nas coisas que dizem sobre o jovem musculoso Thor, estamos repetindo o mesmo preconceito pelo avesso.

Seria uma coisa obrigatória ao filho do homem mais rico do Brasil assumir seu papel imposto pelo destino e comandar a crescente fortuna ad eternum? E a liberdade? E a vontade de fazer o que quer? Onde fica?

Pode soar natural dizer que numa sociedade como a nossa, em que tudo se resume e explica pelo viés do dinheiro, alguém deva reconhecer o esforço de seu pai e dar continuidade aos negócios da família, mesmo que ao custo de sua própria vida. Esta conversa não é novidade. Ao longo de séculos e séculos esta ideologia permeou as casas da nobreza. A crença ancestral de que “o poder está acima das liberdades individuais”, e todos os que tem sangue azul ou destacam-se ao ponto de tingir seu sangue de azul com o sangue dourado e negro das minas da terra devem seguir este preceito estão tão presos a ela como o mais torturado dos escravos era acorrentado ao tronco.

Do mesmo modo, os pais que impõe seu desejo no futuro de seus filhos, obrigando-os a seguir as carreiras que tradicionalmente constituíram sua família, são feitores que escravizam seus descendentes a uma vida imposta.

As pessoas criticam o filho do milionário por sua declaração de nunca antes ter lido um livro inteiro em sua vida. Quando um menino pobre que vive numa palafita sobre um esgoto diz isso, todos sentem pena. Quando é um milionário que poderia comprar todos os livros fabricados pelo país numa única tacada, isso causa indignação.

Mas o fato, é que ler livros realmente não é uma coisa importante pra todo mundo. Nunca foi. Quem diz que é, revela-se apenas mais um  hipócrita interesseiro, que quer engordar o mercado editorial ou posar de sabido, construindo uma perversa hierarquia entre os cultos e os ignorantes.

Estão querendo impor a leitura de livros na base da porrada. A leitura não é o que importa! O primeiro direito do leitor é justamente o de não ler. O próprio Presidente Lula discursou sobre a leitura, que ele não parece julgar importante, uma vez que nas palavras do presidente, “Ler é chato”. “Chegou lá sem ela”, apontariam seus militantes e seus opositores.

Talvez estejam certos. Eu acho que devo concordar com a ideia meio amalucada de que a leitura é uma coisa perigosa. As pessoas que lêem, acabam sendo contaminadas por pensamentos alheios. Elas podem se apropriar desses pensamentos. Podem se transformar a partir deles. E isso certamente é perigoso, pois não sabemos onde isso vai parar. E se elas se mobilizarem? E se isso inspirar uma revolta contra a cobrança de impostos, contra a impunidade ou contra os crimes contra a economia popular? O que será do cartão corporativo? O que será das festas regadas a camarão VG e Veuve Clicot?

Busquemos a nossa liberdade individual. E se não encontrarmos, vamos fantasiá-la.  Vamos ler o que bem entender ou não ler. Façamos todos como o escravo que se julgava livre apenas por poder pensar o que bem entendesse. Mas não espalhem, pois essa liberdade, até esta, pode ser perigosa.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. “As pessoas que lêem, acabam sendo contaminadas por pensamentos alheios”.  Até parece que televisão, conversa ou qualquer meio de comunicação não pode “contaminar”. A leitura é importante, sim! É uma das melhores formas de aprender. Agora só falta falar que aprender não é importante.
    Sobre o lula, onde vc viu essa informação? Porque o que não falta é informaçao errada a respeito da vida do Lula. Um presidente falar que livro não ajudou a chegar onde ele está??
    Espero mais do proximo texto

    • O próprio Lula disse em discurso que “Ler é chato”. Deve ter isso em video aí no youtube.

      O ato mecânico de ler, meu amigo, não tem importância nenhuma. O importante é a reflexão que a leitura provoca, e isso não se consegue de uma hora para a outra. Todos os meios de comunicação afetam as pessoas em graus variados, obviamente. Mas desde que esses produtos tenham conteúdos capazes disso. Hoje o que temos é uma maquina de alienação que focaliza todo seu poder em manter pessoas ligadas a ela como zumbis para faturar em cima de comerciais.

      E mantenho o que disse sobre livros. Ler um livro inteiro não te faz inteligente ou culto. Tem livros inócuos à pampa aí. Livros técnicos, livros de receitas, auto-ajuda, livros e mais livros que não dizem nada.

      Dizer que as pessoas precisam ler livros é tão insano quanto dizer que as pessoas precisam ver filmes. “Mas que filmes?” – Qualquer um perguntaria. E é o que eu digo: “Mas que livros?”

      Será que qualquer um serve?
      Livros são suportes de papel encadernados. Servem para transportar materialmente as ideias alheias. Este suporte não tem obrigação de ser um livro.
      Pode ser revista, site, quadrinhos, pode ser um monte de coisa. Não necessariamente livros. Mas isso significa que livros são ruins? Aí depende.

      Muitas pessoas já pensaram assim, a começar por Hitler.

    • Eu acho que você deveria reler o post, com mais atenção, tentando identificar onde eu estou falando sério e onde estou sendo sarcástico. Depois reflita:

       “Será que um cara que vive de escrever, é autor de livros acha mesmo que ler não é importante?”

      Também espero mais no próximo texto.

  2. “Busquemos a nossa liberdade individual. E se não encontrarmos, vamos
    fantasiá-la.  Vamos ler o que bem entender ou não ler. Façamos todos
    como o escravo que se julgava livre apenas por poder pensar o que bem
    entendesse. Mas não espalhem, pois essa liberdade, até esta, pode ser
    perigosa”.   Genial,  só isso que tenho a dizer. Continue escrevendo textos assim!

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