O desaparecimento do Mosquito

Quando eu resolvi publicar o bizarro caso ocorrido na minha infância, quando o Raiden gerou aquele incidente com o inspetor Zecão, (se não sabe do que estou falando, comece por aqui) eu não imaginava a sucessão de coincidências que aquilo geraria.

Para meu espanto, dois dias depois de publicar aquela memória, um email apareceu na minha caixa. Era uma mensagem de ninguém menos que Marcos Paulo, meu amigo de infância. A gente estudou junto por uns três anos no Santa Edwiges. E quando aquilo aconteceu na quarta-B, o Marcos Paulo estava a apenas duas carteiras de mim.

Para minha perplexidade, em seu email, Marcos Paulo me disse algo que não pareceu faze sentido, a princípio:

“Cara aquele lance lá foi um pouco diferente […] Você inventou aquela porra do raio. Eu vi o coroa ficar tão puto com o Raiden que estava prestes a ter um troço. Eu lembro da veia dele pulsando no pescoço. Ele levou a mão no peito, fez uma cara de dor horrível e caiu pra trás. Não teve clarão, nem explosão, nem merda nenhuma disso. A Aline se mijou e alguém que não lembro passou mal mesmo. Mas não teve raio nenhum. Nada daquilo”.

Então, ao ler o email dele, eu me peguei diante de uma coisa bastante estranha que é ter certeza absoluta de ter vivido algo que ele diz que não aconteceu. Eu sei que aconteceu. Eu vi o raio. Eu ouvi e quase fiquei surdo com o porradão… E a merda do raio é justamente o que explica o apelido do Raiden ter virado Raiden. Assim, imbuído de meu espírito combativo, mandei uma replica sucinta e direta ao M.P.:

“Marcos, deixa de ser mané! Como o apelido do moleque era Raiden se ele não soltou o raio?”

No dia seguinte, MP respondeu:

“O apelido dele não era Raiden. Você ta ficando gagá. O apelido dele era RAIDER! Porque no primeiro dia de aula ele foi com o chinelão azul. Nego zoou pra caralho e ele apareceu com outro tênis no dia seguinte. Era raidER. Você que devia ser surdo, ou burro, ou ambos. Um abraço.”

Algo estava definitivamente errado ali. MP não era de mentir, de modo que ele certamente estava certo, mas, porra eu sei que não sou maluco no nivel de pensar que vi uma coisa desse tipo. Aquilo realmente aconteceu. Não posso crer que minha mente seria capaz de me trair dessa forma.

Assim, naquela noite dormi mal pensando na situação. Estaria eu sendo ludibriado pelas minhas memórias?

Resolvi que não ia deixar isso incólume. Quando amanheceu o dia, tomei meu café, e segui para a rodoviária. Comprei uma passagem e voltei lá. A cidade parecia muito diferente do que era quando fui lá pela última vez.

Andei um pouco sem destino até seguir em direção à escola. Chegando na esquina meu coração apertou. Ela não estava mais lá. Haviam colocado uma garagem de caminhões no lugar do prédio onde passei boa parte da infância trancafiado. Afim de justificar meu dinheiro e as duas horas de viagem, tirei algumas fotos do celular com o celular, fui ate a pracinha onde jogávamos bolinha de gude e revi a quadra onde tantas vezes abri o tampão do dedão jogando bola. Caí muitas vezes ali andando de skate. Ainda era o mesmo cimentão queimado, as mesmas rachaduras… O piso da quadra parecia congelado no tempo.

O sorveteiro ainda estava lá, na esquina. Velhinho, quase uma múmia. Ele já era velho quando eu não tinha nem um metro de altura. Foi uma surpresa vê-lo vivo sentado numa cadeira de ferro ao lado da porta de metal, lendo um jornal com as mãos trêmulas. É o neto dele que toca o negócio. Foi irresistível não tomar o sorvete de máquina. Tentei puxar conversa, ver se ele lembrava de mim, mas ele estava apático, fora do ar. E afinal, eu era ninguém, só mais um dos milhares de moleques que gastavam as poucas economias em sorvetes e fichas de fliperama. Aliás, o flipper ainda estava lá, todo empoeirado no fundo da sorveteria. Sobre ele um papelão estirado onde se lia “defeito” pintado com pilot.

Tomei o clássico sorvete de creme. Sentei no banco da praça onde dei meu primeiro beijo na Maitê.

Ventava pouco e fazia calor. Um molequinho se aproximou segurando uma lata de linha. Empinou uma pipa perto de mim, mas sem muito sucesso devido a falta de vento, ela emborcava e caía na quadra.

Eu terminei o sorvete e estava me levantando para jogar na lixeira cheia de abelhas quando uma voz poderosa ecoou na praça.

-Tá de sacanagem! Não é possível que é você!

Era o fininho. Fininho foi um amigão da escola. Me aproximei sem graça mas senti o violento aperto nas costelas com aquele abraço empolgado. O apelido já não fazia jus ao sujeito, que media quase dois metros e parecia ostentar com orgulho uma pança digna de um troll.

Tomamos um novo sorvete. Fininho me fez contar pra ele mais da metade da minha vida. Ele agora era caminhoneiro e por coincidência do destino (ou não) tinha levado uma carga pra lá. Como sempre fazia, não deixava de ir ate a praça tomar um sorvete.

Contei a ele que tinha voltado na cidade porque não conseguia conviver com a ideia de que talvez eu estivesse ficando maluco ao ponto de não saber mais separar a fantasia da realidade. Fininho se intrigou e então eu expliquei o caso do RaidEN e como o Marcos Paulo cismou que era RaidER e que não tinha tido nenhum raio nem nada assim… Fininho ouvia atentamente e então pareceu ficar sério. Eu esperei que ele dissesse alguma coisa mas ele encheu a boca de sorvete limpou o suor da testa e olhou para o vazio. Vendo que ele não queira falar, eu forcei:

-E aí? Tu lembra?

-Lembro.

-E então?

-A gente não fala dele. A gente não fala… – Ele gemeu entre dentes com a colher de madeira na boca.

Só aquilo ja me encheu o peito de esperança. Então retruquei:

-Não precisa falar, Fininho. Apenas me diga: Não era Raider porra nenhuma né?

-Não era. – Ele disse movendo a cabeça de um lado a outro lentamente. Então completou: – Eu… Eu também não lembro direito. É tudo… nebuloso. O homem. O homem velho… lembra do homem?

-Claro! lembro perfeitamente! Ele veio e avisou um a um. O que ele disse pra você?

-Nem sei mais.  – Disse Fininho, com um olhar perdido.

-Ele me disse que se eu contasse ia matar a minha mãe. E que ia me prender… Eu me caguei, moleque.

-Todo mundo da Quarta-B se cagou. Aliás… Deixa pra lá.

-Que?

-Nada.

-Fala Porra!

-Semana passada encontrei a Rejane num jantar dançante do clube. Ela ta com duas filhas lindas. Casou com o Mario. Lembra do Mario?

-Que Mario?

-Aqueeeeele… – Disse Fininho sorrindo em tom jocoso.

-Ah viado.

-Sério. O Mario filho da professora de Português. Dona Sílvia.

-Ah! Lembrei o gordinho.

-Pois é. O Mario ficou rico. Hoje é dono de metade da cidade. Ele comprou ate a granja, expandiu o negócio. Ta exportando pra Ásia.  Você já foi lá em cima?

-Não. Vim direto aqui pra praça… E a Rejane?

-Ela esta bem. Meio plastificada. Coisa mulher de rico. Sabe como é. Mas as filhas… Rapaz. Deviam ser modelo.

-Mas você disse que falou com a Rejane. – Perguntei tentando levar Fininho ao ponto em que ele tinha estagnado.

-Então… Foi assim, na festa, ela tomou uns birinaites e la pelas tantas me pegou pelo braço. Os olhos arregalados. Ela tava com os olhos vermelhos, achei que ia chorar. Minha patroa ate ficou meio enciumada.

-O que ela disse?

-Ela perguntou se eu lembrava do Mosquito… Disse que ia me contar o que aconteceu. Que ela sabia de tudo e que… Como que era mesmo? Esqueci o nome dele.

-Era Fábio.

-Isso! Isso mesmo. Fábio… Nem a mãe dele chamava ele de Fábio. – Fininho deu uma gargalhada que assustou o molequinho da pipa.

-Mas… E aí?

-A Rejane namorou o mosquito, vc sabe né?

-Não, nessa época eu já tinha me mudado lá pro Rio.

-Namoraram firme. Todo mundo achou que iam casar e tal. Mas o Mosquito cara… O Mosquito se fudeu.

-Como assim se fudeu?

-O mosquito tinha um programa de rádio, aqui na radio cidade. Ele tinha um programa, como que era o nome mesmo? Porra. Ta foda lembrar. Calmaí que ta na ponta da língua…

-Porra, foda-se o nome. O que isso importa, fininho?

-Ah! Programa do mosquitinho atômico! É isso.

-Que bosta de nome.

-Fazia o maior sucesso, meu. Só tocava uns rocão e tal. E um dia, o mosquito resolveu contar no ar do dia que o Raiden fez… aquilo.

-Sério?

-Sério. Ele era daquele jeito, mas porra… O cara depois quando sumiram com o Raiden, ele foi ficando mais e mais paranoico, meu. Ele “entrou numas”, ta ligado?

-Não.

-Ele tipo começou a se culpar daquela porra toda. E o coroa, lembra que o coroa chamou ele pra sala primeiro? Então, ele nunca contou pra ninguém o que o coroa falou com ele, mas aquele cara botou o maior medão em geral. O mosquito ficou sequelado com aquele bagulho. Daí um dia, sei lá que merda que deu, deve ter fumado um orégano, vai entender… Ele pegou e contou na rádio a porra toda. Chorou e tudo. Deve ter dado  a maior audiência. Foi na véspera do natal.

-Será que ele se matou?

-É o que todo mundo pensou, porque ele saiu da rádio naquele dia e escafedeu-se. Pegou o carro e nunca mais acharam nem ele nem o carro. E eu acho que…

-Acha?

-Cara deixa essa porra quieta. Vive tua vida. – Ele disse, fazendo menção de levantar.

Eu agarrei o fininho pelo braço, gordo e suado.

-Porra agora fala. Senão quem vai pirar sou eu, bicho!

-Acho que deram um aperto na Rejane. Eu até desconfiava, mas quando ela me agarrou pelo braço na festa… Eu sabia que ela queria me falar uma coisa. E sabia que essa coisa era sobre o sumiço do Mosquito. Ela disse que sabia dele e tal. Que tava na cola dele, tentando achar ele. Ela acha que o mosquito ta vivo, cara. Pelo jeito o casamento com o Mario deu ruim.

-Se é como você diz. Parece que sim.

-Certeza que ela ama é o mosquito, mas o Mario chegou junto. Na época do cursinho o Mario já arrastava uma asa pra ela e tal. Até que o Mosquito uma vez quebrou o dente dele com uma bica por causa dela… Também, ela era um avião! Dona patroa lá de casa tem ciúme dela até hoje.

-Como se aquela mulher fosse te dar condição, né fininho?

-Sou de boa. Nem se ela quisesse. Eu não quero aporrinhação. Aqui o lema é o “deixa vida me levar… Vida leva eu…”

-Mas o que tu acha? Pegaram o maluco? Será que esse programa dele tem gravação?

-Tem sim, meu velho. Acho que tem na radio. Se não tiver lá deve ter no inquérito do desaparecimento do Mosquito.  – Disse Fininho, acendendo um cigarro.

Fininho olhou no enorme cebolão em forma de relógio dourado que ele tinha no braço. Tava na hora dele. Nos despedimos com o clássico abraço de urso quebra costela, com tapões do tipo que tira até encosto na base da porrada.

-Vê se não some, porra!

-A gente se fala, meu amigo. Beijo nas meninas.

Segui meu rumo pela cidade. Enquanto caminhava pelas ruas onde tantas voltas dei com minha bicicleta e com a bicicleta dos vizinhos, me peguei pensando na razão pelo qual o Marcos Paulo me escreveu para dizer que eu estava viajando na maionese… Por que ele mentiria pra mim? Por que tentaria me convencer de algo que eu sei que aconteceu?  A menos que…

Foi quando um pensamento aterrorizante se apossou de mim:  E se não foi o Marcos Paulo que mandou aquele email? 

Logo eu estava diante da delegacia. A Radio era a um quarteirão de distância e essa é a beleza das cidades do interior. Entrei na delegacia. Expliquei a situação, contei o que havia se passado para o investigador. O homem não pareceu muito interessado. Foi nos arquivos e voltou dali a dez minutos com uma pasta. A pasta era da investigação do desaparecimento do Mosquito.  Ali tinha uma fita cassete onde o policial disse que havia a gravação do último “Programa do Mosquitinho Atômico” Felizmente ele também tinha a parada em um Cd.

Perguntei se poderia ter uma cópia e dei a desculpa de que queria “me lembrar de um velho amigo de infância”. Como o policial verificou nos documentos, meu nome realmente constava na lista de alunos da Quarta B. Assim, ele pediu um tempo para fazer a cópia pra mim. Fui fazer uma hora numa padaria nas proximidades. Meu ônibus sairia de volta para o Rio dali a duas horas. Era tempo mais que suficiente.  Tomei dois cafés deliciosos e esperei.

Depois retornei à delegacia, onde o detetive Pedro me deu a cópia do Cd. Aproveitei a deixa para copiar à mão a lista dos nomes dos alunos da quarta B.

Voltei para a minha casa segurando o cd nas mãos. Entre uma curva e outra da serra, eu lia os nomes daquela lista. Eram 25 nomes, e alguns não me diziam nada, mas de outros eu me lembrava claramente…

Quando cheguei em casa, um recado piscava na secretária eletrônica. Cliquei para ouvir e só escutei uma respiração pausada e profunda. E então, no fim quando parecia que ninguém ia dizer nada, uma frase quase parou meu coração:

-Não se meta com o desconhecido! 

Eu reconheci a voz de imediato. Era o velho. O velho que disse que ia me prender se eu abrisse o meu “bocão”.

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Cara, que bom que continuou essa fita do Rayden, mas vou confessar que lá pro meio da historia eu achei que o fininho ia dizer que era RaiD (mata baratas, moscas e insetos) e que esse era o motivo do desaparecimento do mosquito. Mosquito, inseticida… sacou?

    deixa pra lá.

    Aguardando o desenrolar dessa historia.

  2. Às vezes acho que seu senso de realidade e sua imaginação são misturados…rsrs Uns cinco anos atrás visitei o colégio onde fiz a primeira série <3

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