Nas montanhas dos Gorilas – Parte 3

Olya me puxou com grande violência para dentro e trancou a porta da sala.

A sala era totalmente escura, mas Olya tinha uma lanterna potente com ele.

–Meu Deus, cara… Como você chegou aqui com esses bichos lá fora? — Ele me perguntou, chocado.

— Eu posso te fazer a mesma pergunta, Olya.

–Essas coisas atacaram a gente! Pularam em cima do Marcell vindos não sei de onde. Acho que saíram do macacão gigante perto da piscina! Eles estavam escondidos lá — Ele disse, se sentando numa confortável cadeira. — E Marcell pegou a arma, ia atirar num deles, mas os bichos eram muito fortes, nem deu tempo. Eu saí correndo na mesma hora, mas o burro do Lucca foi ajudar o Marcell. Eu dei no pé, porque eu não sou burro. Achei que só eu tinha sobrevivido… Mas ei, você está molhado!

Eu olhei ao redor enquanto Olya falava. Era uma sala repleta de telas e painéis. Tudo parecia desligado. Haviam arquivos, mesas de reunião. A sala era redonda, circular, com portas de aço. Notei que as portas estavam amassadas. Minha atenção do ambiente foi distraída quando notei que Olya estava fazendo perguntas.

–Ei, ei… Tô falando com você! Phil, tá me ouvindo, alô???

–Hã? Desculpa.
–Eu perguntei se você sabe se o Jhonny foi comido. Eu não vi o Jhonny. Quando deu a merda eu corri pra um lado e o moleque feio correu para o outro.

–A essa altura, ele já está na pança dos macacos também, com certeza. Eu só escapei por milagre!

–Como você escapou?  — O russo me perguntou, enquanto remexia nuns papeis empilhados numa mesa.

–Eu estava no alto do tobogã, mas aí deixei cair a lanterna. Um macaco ouviu e me perseguiu. Por sorte, quando isso aconteceu, os outros macacos tinham vindo atrás de você.

–Então fui eu que te salvei! – Olya sorriu, se sentindo heroico.

Eu concordei com a cabeça.  — Esse macaco que me perseguiu… Ele é diferente, cara. Ele é mais esperto. Ele não faz barulho. Ele veio me caçando. Eu primeirio me escondi num daqueles carrinhos que giram. Fechei a grade e ele não sabia mexer na trava, e a grade não deixou ele me agarrar. Aí sabe o que o desgraçado fez?

–Eu sei.

–Sabe?

–Sei. Ele fingiu que foi embora e se escondeu para te dar o bote.

–Porra, exatamente, como você sabe isso?

–Porque é uma coisa esperta. Esses macacos, Phil… Isso aí não é bicho da natureza.

–Isso tá na cara, Olya!

–Não, não… Você não está entendendo, Phil. Olha aqui. — Olya me estendeu o calhamaço de papéis e a lanterna.

dentrolab | Contos | conto, Contos

Eu fiquei lendo sem entender bem do que se tratava. Pareciam recibos diversos. Olya precisou me mostrar e explicar. Ele arrancou alguns papéis da minha mão.  E apontou coisas.

— Isso aqui diz que esses macacos passaram por terapias genéticas. Eles mexeram no genoma dos animais, depois os criaram e colocaram no parque.

— Mas por que fariam isso?

— Eu não sei. Mas eu tenho uma desconfiança, Phil. Eu acho que isso aqui parece um parque… Mas não é.

— Hã?

— É isso mesmo que estou dizendo. Veja, olha essa sala. É uma sala de controle. Note todas essas telas. Esses caras monitoravam o parque todo daqui.  Vem cá, veja só!  Olha para isso aqui!  — Olya me disse, abrindo um arquivo e pegando uma pasta. Essa pasta tinha uma série de materiais encadernados. Nomes de pessoas, fotos, elementos diversos. Eram pessoas aleatórias. Muitos eram marcados com as características físicas. “profissão: desocupado”. “Andarilho”, “viciado”, “mendigo”… Havia um monte de gente.

— Mas o que são essa gente toda?

— Eu não sei, mas o que isso estaria fazendo aqui num parque que nunca funcionou?

— Talvez fossem empregados do parque?

olya | Contos | conto, Contos

— Andarilhos? Viciados? Duvido muito. Vai olhando, fica à vontade. Olha um por um. Você vai ver um monte de gente que pode sumir que ninguém dá falta. É a única coisa que esses caras todos têm em comum… –Ele disse, apontando o arquivo.

— Meu Deus, Olya!

— Mas é esse aqui que me intriga mais. Toma! – Ele me estendeu uma das pastas. Ao abrir, eu imediatamente reconheci: Raphael Bronstein.

— Caralho! O Rafa!  — Balbuciei incrédulo.

— Ele mesmo.

— Mas-mas… O Rafa desapareceu numa exploração.

— Nunca acharam o corpo dele. — Disse Olya, tirando o boné vermelho e passando a mão sobre os cabelos louros.

Raphael Bronstein  era um dos mais antigos exploradores urbanos que antecederam nosso grupo. Ele tinha um canal grande e a infeliz mania de explorar lugares perigosos sozinho. Todos sempre imaginamos que ele tinha morrido num desabamento de uma mansão abandonada na Antuérpia.

— O Rafa foi morto! Foi trazido pra cá por esses caras.

— Caralho.

— Esses malucos alimentaram os macacos com gente. Eles jogam as pessoas aqui. Isso não é um parque, Phil! Tá na cara. Isso é um experimento.

— Filhos da puta!  Isso explica o monte de gente morta.

— Hã? Do que você tá falando? — O russo me perguntou curioso, enquanto abria a mochila para pegar uma garrafa de vodka.

Eu contei sobre a caverna e ter caído sobre um monte de corpos dentro do Kong. Ele me estendeu a garrafa e tomei um gole. Queimava como álcool puro.

— Como você consegue beber essa merda?

–Bem… A gente se acostuma… E a sua birita do gran finale?

— Tomei lá dentro do Kong quando os macacos desistiram de me caçar. — Eu disse sorrindo.

Olya concordou — Foi um bom motivo, Phil! Temos que celebrar a vida, porquê uma hora ela acaba!

Então uma batida forte atingiu a porta.  Eu me assustei. Mas Olya pareceu aborrecido.

— Shhh. São eles. Voltaram de novo. Eles vão e voltam. Estão me mantendo aqui. Por isso me impressionei de você conseguir chegar aqui. Eles ficam repetindo o truque de fingir que desistem.  Olya sussurrou: “Presta atenção agora.”

Foram mais uns cinco socões na porta. Mas ela era muito forte, de aço. Imaginei que a porta era blindada. As batidas na porta tinham recomeçado. E então, do nada, pararam.

Eu e o russo fiamos nos olhando, sem saber o que fazer.

Foi quando a coisa mais incrível rolou: As batidas começaram, mas em vez de socões, eram batidinhas. Como alguém que bate numa porta de quarto de hotel. Comedidas, educadas e numa sequencia clara de batidas fortes e fracas alternadas.

“plam, plam plam, PLAM,PLAM,PLAM, plam, plam,plam…

Eu olhei para Olya.

— S.O.S.  – O russo sussurrou.

— S.O.S?

Olya sorriu maliciosamente.

— Mas esses filhos da puta são muito malandros!

Depois de um tempo batucando SOS na nossa porta, ele desistiu e foi embora.

— Eles aprenderam isso. Certamente devem ter usado muito, devem ter visto os sobreviventes fazer isso nas portas para conseguir entrar. Eles não sabem o que significa, é claro, mas eles viram que essa combinação de batida faz pessoas desavisadas abrirem as portas pensando que vão ajudar os outros e aí…

— A pessoa se fode!

— Exatamente.

— Porra, que macaquinho mais engenhoso.

— Isso não é macaco, Phil. É uma outra coisa!

— Mas o que os caras querem com isso? Pra que fazer isso, cara?

— Eu não sei. Talvez seja um tipo de Universo 25

— Universo o quê?

— Universo 25. Meu amigo, o experimento Universo 25 foi algo bizarro que aconteceu há um tempo atrás. Eram ratos, não macacos, mas a ideia era a mesma: criar um ambiente controlado para estudar o comportamento animal. Um cientista construiu um paraíso para ratos, com comida, água e espaço em abundância, e pensou que eles viveriam felizes para sempre. Na verdade ele queria saber justamente isso. O que iria acontecer ali.  Mas, conforme o tempo passava, as coisas ficaram estranhas. Os ratos começaram a brigar, se isolar e se comportar de maneira bizarra. Eles pararam de se reproduzir e acabaram morrendo. Foi como se a utopia se transformasse em pesadelo.

— Que louco, meu.

— O que isso tem a ver com nosso parque abandonado e os macacos? Bem, acho que alguém tentou criar um Universo 25 para macacos transgênicos aqui, Phil. E, como os ratos, algo deu muito errado. Os macacos se tornaram inteligentes, mas perigosos. Eu acho que o experimento deu ruim.  Agora estamos presos neste experimento. Precisamos encontrar uma maneira de sair daqui antes que também nos tornemos parte dessa bizarra tragédia científica.

— O parque era uma fachada perfeita. Mas como vamos sair daqui com essas coisas aí fora. Não tem telefone aqui?

— Tem. Mas a comunicação foi toda cortada… Aliás, eu ia falar isso.

— O que?

— Acho que os macacos deram um “bote” na equipe de controle.  Eles isolaram os cientistas. Eles destruíram o próprio experimento e ficaram presos nele.

— Faz sentido. Por isso algumas coisas se ativam automaticamente e outras estão destruídas.

— Deve haver câmeras e um circuito de vigilância em todo o parque, mas os macacos de alguma maneira descobriram. Eles desativaram e os cientistas viraram os prisioneiros. Os macacos devem ter destruído toda a comunicação com o mundo exterior.  Pegaram um a um, até não restar ninguém. Então, o experimento segue por sua própria sorte.

— Como vamos dar o fora daqui?

— Bem, eu ia te perguntar isso, Phil. Você que conseguiu chegar aqui. Eu apenas vim e me tranquei.

— Humm… Não sei. Mas como você conseguiu escapar daqueles dois macacos, Olya?

Na sala de cinema, lá em baixo, eu eu entrei na cabine do projecionista e me escondi debaixo da bancada. Ela tem uma tranca muito básica, mas consegui me trancar. Eles ficaram correndo de um lado para o outro. E aí começaram a gritar loucamente quando não me acharam.

— Ah, eles fazem isso. O Silent fez isso comigo.

— Silent?

— Eu batizei de Silent o macaco maníaco que me perseguia em silêncio, hehehe.

— Bem, aí depois que eles começaram a gritar, os outros vieram, ficaram vasculhando todo o castelo, cara. Eu estava com medo que me descobrissem. Havia um armário repleto de filmes e latas. Quando eles subiram para o segundo andar, eu arranquei as latas do armário, e entrei lá e me tranquei por dentro. Foi minha sorte.

— Já até imagino.

— Minutos depois os macacos arrombaram a sala de projeção. E começaram a socar os painéis e me procurar, mas eles não conseguiram abrir o armário. Foi quando do nada, todos saíram correndo.

— Ah! Deve ser quando Silent começou a gritar lá no Kong. Ele fez um escândalo desses, chamou a patota para me procurar.

Olya bateu no meu ombro. — Então, Phil, você também salvou minha vida, meu caro! Quando os macacos saíram, eu dei um tempo e fugi daquele armário, passei a procurar um abrigo melhor. Essa sala no final da escada era a sala com as portas mais resistentes. Imaginei que devia ter algo de valioso. Peguei o equipamento e arrombei. Tempos depois, os macacos voltaram e ficaram batendo nas portas. Eles me ouviram e agora sabem que estou aqui, preso. De vez em quando, um vem e tenta o macete do SOS, pra ver se sou burro.

— E o Bob?

–Eu tentei gritar para ele, pedi socorro, mas estamos muito longe. Com certeza não dá pra ouvir. Eu acho que o Bob a essa altura deve ter avisado a polícia. Talvez se apenas esperarmos, eles podem vir nos buscar.

— Mas e se o Bob se ferrou, Olya? Eu peguei o radio, tentei chamar o Bob varias vezes e nada. Ele não responde.

Olya me olhou preocupado. Sem Bob na retaguarda, estávamos por nossa própria conta na maldita “montanha dos gorilas”.

Ficamos ali em silêncio por uns momentos.  Fiquei olhando para o facho da lanterna apontado no teto que iluminava a sala com uma luz difusa. Sabíamos que se ficássemos indefinidamente naquela sala os macacos não nos alcançariam, mas era questão de horas até a desidratação e a fome nos matarem.

Foi quando uma ideia me ocorreu.

— Olya, eu tenho uma ideia!

— Fala, ué!

— Quando eu estava na caverna do Kong, eu achei um alçapão. Ele desce uns vinte degraus para baixo e dá numa porta de aço igualzinha a essa aqui. Mas estava trancada com um cadeado. Aliás, eu só sobrei vivo porque entrei naquela porra de buraco. Essa passagem é oculta por uma pedra falsa de espuma, então eu acho que ela era parte de uma rede de salas e túneis por baixo do parque.

— Sim, sim!  — Olya se levantou empolgado — Faz sentido! Deve haver uma rede de túneis aqui por baixo!

— Se os macacos não sabem onde são as passagens, podemos usar os túneis para atravessar o parque sem que nos vejam.

— Genial! Genial, Phil! Mas tem um problema. Só sabemos dessa passagem que você descobriu no Kong…

— Sim, vamos ter que ir lá.

— Sabe que pode dar ruim. Podemos não sobreviver!

— Mas é melhor que ficar aqui esperando a morte.

Olya deu mais um gole na garrafa e concordou numa frase: — Deus nos ajude!

A sala em que estávamos não tinha janelas. Ela era repleta de monitores, e todos estavam sem energia. A única saída era a porta.

Olya pegou a mochila dele. Eu estava com as minhas roupas úmidas e aquilo era extremamente desagradável. Verifiquei o estado das minhas lentes. As boas eram seladas, à prova d´água, mas eu tinha algumas chinesas de baixo custo que já eram. Joguei essas lentes fora. Isso diminuiu um pouco o peso da minha mochila.

— Os macacos sabem que estou acuado aqui, mas eu acho que eles não sabem que você está aqui comigo. — Olya me disse.

— Silent me viu mergulhar no lago e nadar pra cá. Eu acho que ele deve estar por aí, me procurando.

— Sim, mas ele não tem como saber que estamos juntos. Temos que usar isso a nosso favor de alguma maneira. O que podemos fazer?

— Acho que eu posso sair, vou para algum outro ponto do parque e então eu atraio a atenção deles, eles vão pra lá e a gente se encontra dentro do Kong! Separados vai ser mais perigoso, mas se fizermos a jogada certa, eles vão ficar confusos. Ora vão tentar me pegar, Ora vão tentar pegar você. Nessa damos um ao outro a chance de fuga. Você tá com seu radio aí ainda?

— Eu estou, mas e o seu?

— O meu molhou não sei se estragou.

— Dá aqui, deixa eu ver. — Olya me disse. Entreguei o aparelho pra ele. O russo foi ate a mesa de reuniões, abriu a mochila e pegou um estojo com cuidado. Ele abriu o estojo e havia ali um monte de ferrinhos de todos os tipos. Me passou a lanterna e mandou que eu apontasse para ele. Com um daqueles ferrinhos, Olya abriu meu radio. Ele estava cheio de água.

O russo desmontou a placa de circuito, removeu a bateria, desconectou o painel de botões e a placa de cristal líquido.  Eu apenas fiquei olhando Olya fazer sua mágica.

Ele então pegou o resto da vodka e deu um banho na placa.

— Caralho, que isso?

— Estou limpando o circuito. Funciona quase igual álcool isopropílico.  –Ele disse, concentrado no projeto. Depois remontou o radio com cuidado e precisão. Ligou e funcionou.

O indicador de bateria mostrava que ela estava quase no fim, mas o radio tinha voltado a funcionar.

— Deve dar uns quinze minutos de vida. — Olya disse.

— Mais que suficiente para o plano! Como faremos?

— Bom, ilumina aqui. — Ele disse, pegando um papel e uma caneta da mesa. E começou a desenhar. — O lago fica aqui, estamos no castelo aqui.  O Kong fica lá perto das piscinas, nesse ponto aqui.

Eu o corrigi.  — Não. É mais pra cá. Aqui está a montanha-russa. Seguindo em frente, a gente vai chegar naqueles brinquedos de carrossel, e depois vem o Kong. Ele fica  bem aqui.

Olya ficou olhando nosso mapa esquemático.  — O que será que tem para esse lado?

— Tem um tipo de brinquedo daquelas torres que sobe uma cadeira e despenca. Eu vi lá do mirante. Ela tem uma série de alto falantes, umas antenas de satélite nela.

— Hum. Interessante. Talvez possamos usar isso. É alto?

— Muito alto. É o ponto mais alto do parque essa torre. Mas ela está repleta de ninhos de garça.

— Certo. Mas se tem alto falantes, isso me deu uma boa ideia. Se eu conseguir chegar lá, posso tentar conectar a saída de som do radio nos alto falantes da torre e aí a gente chama os macacos.

Comecei a rir do plano maluco.  — O rádio não tem energia! Ele esta nas últimas. Claro que não vai dar certo, meu!

— Bem, isso é verdade, mas de noite, a energia de alguns setores é ativada para acender os postes. Deve ter um conjunto elétrico de emergência. Eu posso tentar fazer umas gambiarras e ativar o sistema de som, ligando ele na energia dos postes.

— Bem, eu não sei. Acho tão complicado isso. E se a gente fosse direto para o Kong? A gente sai no escuro, vamos até o lago, daí nadamos até a ilha, e…

— Eu não sei nadar, Phil.

— Porra, aí danou-se então. Mas se bem que eu realmente não gostaria de nadar no escuro nesse lagão, porque eu tenho medo de ter crocodilo aí dentro.

— Faz sentido.

— Tá, então o lago tá fora. Vamos ter que confiar nesse plano doido. Você sai e vai pra direita do castelo. A Torre não fica longe. Vai dar pra ver ela contra o céu.

— A vantagem de ser alta é isso.

— Eu vou sair pelo fundo do castelo. O problema é que eu não sei o que tem lá. Meu medo é o Silent.

— Acho que nós devemos fazer um plano para ferrar esse Silent primeiro. Os outros parecem mais estúpidos.

— Uma armadilha?

— É, ué.

— Tá, o problema é que o Silent é muito esperto. Ele deve estar por aí, escondido, ou tentando me rastrear. Aqui nessa sala fechados, não sabemos onde ele pode estar agora. Podemos abrir a porta e ele estar bem ali na curva da escada esperando darmos um vacilo qualquer.

Olya concordou, pensou um pouco e disse: — Aqui do lado do castelo tem um um brinquedo. Um navio pirata encalhado.

— Eu vi.

— A gente pode tentar ir por ali e fazer alguma armadilha pro Silent.

— Tá, mas temos que atrair ele. Como vamos fazer isso, cara?

— Temos que pensar como se a gente fosse o Silent. O que você faria?

— Eu me esconderia aqui no castelo, esperando que a gente saísse e então atacaria…

— …Por trás!  É isso que ele vai fazer!

— É mesmo como ele tem feito. Ele me deixa passar e vem atrás. Ele ataca sorrateiramente, nunca de frente! Esse macaco já deve ter visto outros se ferrarem com gente armada e aprendeu a usar a surpresa.

— Sim, por isso que todos atacaram de uma vez só quando o Marcell sacou a arma. Vamos fazer assim — Olya consultou o relógio. — Esperaremos anoitecer. Nós dois saímos daqui. Eu vou passar pelo buraco no cinema e saio para os fundos do castelo. Dali vou pelas árvores e chego no barco do pirata. Tem uma grande rede de pesca bem lá na frente. Eu vou cortar as cordas e monto a armadilha. Aí passo o radio e você sai pela frente. Ele vai vir atrás de você. Corre direto para o barco. Então eu jogo a rede e a gente “pesca” o Silent. Assim que a rede cair sobre ele, já estarei com um porrete esperando para estourar a cabeça dele antes mesmo que ele ele grite.

— Pode funcionar.

— Eliminando o Silent, teremos mais tranquilidade para chegar no Kong…

Olya tirou o aparelho do bolso e consultou o celular.

— O celular continua sem sinal! Está assim desde que chegamos!

— Nada, nada de sinal?

— Deve ter algum tipo de bloqueador. Eles pensaram em tudo. Aquelas coisas que você falou na torre… Podem ser bloqueadores, eles chamam de “S-Jammers”.

— Malditos. Se eu pego esses caras…

— Eles já se foderam. Relaxa!

— Aqui se faz, aqui se paga. — Respondi, deitando no chão de carpete. Coloquei a arma do meu lado e vi que Olya estava olhando para ela.

Resolvemos descansar por algumas boas horas antes de chegar o momento do ataque. Aproveitei para ler alguns dos memorandos dos armários.

Ali estavam notas de compra, papeladas de montagem de estruturas, varias coisas assim, burocráticas. Muita coisa estava com nomes de código então era difícil saber do que estavam falando. Um dos papéis era um relatório que informava ao chefe do setor “Biotech 3” que “Blando” estava apresentando comportamento anormalmente estranho.
Eu não sabia o que era “Blando”, mas imaginei que talvez se tratasse de um nome código de algum dos macacos. Talvez “Blando” fosse o verdadeiro nome do “Silent”.  O relatório era muito vasto e detalhado mostrando que Blando havia passado com louvor em todos os testes aplicados nele. Pulei lá na frente, para ler algo do meião aleatoriamente. Na página que abri o gerente do setor “PsiTech 3”  informa ao gerente do Biotech 3 que Blando “está tão avançado” ao ponto em que ele sugere que Blando seja “colocado para dormir” e necropsiado para entender o que estava acontecendo no cérebro do animal.

Eu precisei ler três vezes para acreditar no que tinha acabado de ver no papel: Blando tinha aprendido a escrever! O tal macaco havia se alfabetizado! Sozinho.

Voltei ao inicio do relatório e fui acompanhando a evolução do que fizeram, com Blando. Continuei lendo mais e mais e vi que ocorreram diversas reuniões para tratar do que passaram a chamar de “problema Blando”. Tive medo que tivesse matado o pobre macaquinho, mas no final eu vi que eles decidiram que Blando não poderia ser morto, já que ele representava um ponto de virada onde a terapia genômica tinha finalmente criado um super-símio de inteligência acima do normal. No entanto, no final do relatório, Blando estava tão à frente de seu grupo que isso estava produzindo conflitos, porque ele estava ficando mais e mais estressado e revoltado de perceber que era o único que “pensava com alguma clareza” num ambiente onde todos ali eram completos idiotas.

Um rugido grotesco me assustou e quase perdi o ar. Era um ronco.

Olya estava de barriga pra cima, deitado perto dos arquivos, o boné vermelho na cara, usando a mochila de travesseiro e roncando tranquilamente. Eu não sei como o russo conseguia ser tão frio estando cercado de macacos canibais assassinos, preso num tipo pesadelo bizarro de onde não se pode acordar.

Retomei a leitura do início.

Os cientistas resolveram manter Blando separado. Coletaram material genético dele e aperfeiçoaram as novas matrizes, gerando filhotes mais inteligentes. A primeira geração dos macacos, de onde Blando veio, foi toda eliminada, com exceção dele.

Fui lendo e percebendo que o “problema Blando” ultrapassava todos os limites éticos consideráveis. Para ativar o cérebro de Blando e aumentar sua inteligência e força, os cientistas realizaram uma série de modificações genéticas específicas. A abordagem foi intrínseca e extrínseca. Inicialmente, induziram correntes elétricas no cérebro dele desde filhote, estimulando eletronicamente as sinapses. Depois veio o método intrínseco. Isso envolveu a manipulação de diversos genes e neuroreceptores para ampliar suas capacidades cognitivas e físicas. Inicialmente eles usaram um programa de identificação de alvos genéticos. Os cientistas identificaram os genes e neuroreceptores que desempenham um papel fundamental na cognição e no desenvolvimento muscular em primatas, como o chimpanzé. Eles selecionaram uma variedade de genes envolvidos na neuroplasticidade, memória, processamento de informações e força muscular.

blando1 | Contos | conto, Contos

Em paralelo, um grupo do que eles chamam de Biotech3 trabalhava num caminho de vetorização de Terapia Genômica: Criaram um vetor de terapia genômica especial, contendo genes modificados para ativar ou aumentar a expressão dos alvos identificados. Esse vetor foi projetado para ser altamente eficiente na entrega de material genético nas células de Blando.

Quando essa etapa do projeto finalmente foi concluída, passaram a Administração da Terapia Genômica: A terapia genômica foi administrada a Blando por meio de injeção intravenosa, permitindo que o vetor alcançasse as células do cérebro e dos músculos. E eletroestimulação continuava em sessões alternadas a cada duas horas. O vetor foi projetado para penetrar a barreira hematoencefálica, garantindo que as modificações genéticas ocorressem no cérebro do macaco.

Em seguida, entrou em ação o grupo PsiTech 3  que passaram ao estímulo Gradual: As modificações genéticas foram programadas para serem ativadas gradualmente ao longo do tempo. Isso permitiu que o cérebro de Blando se adaptasse às mudanças e minimizou o risco de rejeição. Assim obtiveram um aprimoramento da Inteligência. As modificações genéticas envolveram a ampliação da densidade de neurônios no córtex cerebral de Blando, promovendo uma maior capacidade de processamento de informações, memória aprimorada e habilidades cognitivas mais avançadas. Havia uma nota de rodapé informando terem usado genes especiais de um tipo de água-viva que se mostrou eficaz no aumento da intensidade de recuperação neural e ampliação axonial.  Um programa de hiper estimulação baseado em bombas de sódio para dinamizar as sinapses colinérgicas, que possuem como neurotransmissor a acetilcolina atuando em receptores nicotínicos do tipo 2 foi empregado. Assim, eles visavam obter um considerável aumento da força muscular.

blando2 | Contos | conto, Contos

Como os genes modificados aumentaram a eficiência dos músculos de Blando, estimulando o crescimento muscular e melhorando sua força física, ele começou a crescer ao ponto dos tais relatórios de níveis críticos exigirem mais e melhores “protocolos de contenção e controle de agressividade”.

Alguns documentos traziam detalhes dos monitoramentos e ajustes no programa Blando. Os cientistas monitoraram de perto Blando durante todo o processo, realizando exames de imagem, análises de sangue e testes comportamentais para avaliar seu progresso e eficácia das modificações genéticas.

À medida que Blando se desenvolvia, os cientistas fizeram ajustes nas modificações genéticas com base em suas observações e resultados dos testes. Gradualmente, Blando se transformou em um símio com habilidades cognitivas excepcionais e força física surpreendente, tornando-se o líder dos macacos no parque e pai de dezenas de filhotes, todos muito grandes, fortes e super inteligentes.

Cansado e com os meus olhos marejando de ficar lendo na escuridão com a forte lanterna do Olya no papel branco, apaguei a luz e dormi.
Acordei sendo sacudido pelo meu amigo russo. Estava na hora.

— Meia noite já! – Ele disse, me mostrando a tela do celular. A luz ardeu nos meus olhos.

Me levantei ainda tonto. Eu estava dormindo bem gostoso e sonhando com um prato de macarronada. No meu sonho, eu estava comendo macarronada junto com um avestruz num restaurante.

— Cara você não vai acreditar no que eu li nesse relatório aqui. Eles ensinaram um macaco a ler!

— Alfabetizaram o macaco?

— É o que está escrito ai. Na real, diz que ele aprendeu sozinho.

— Ah, eu não acredito. Não é possível. Se bem que estamos vendo para crer, né Phil? Bom… Vamos? Tá pronto?

Respirei fundo, e respondi: –Tô! Vamos nessa!

Olya apagou a luz.

— Ué. Acende essa porra, meu.

— Shhhh! — ele sussurrou –Vamos ficar um tempo na escuridão para acostumar os olhos. Não podemos usar lanternas. Elas vão atrair eles!

Aquilo não estava nos meus planos. Mas concordei. Ficamos alguns minutos na completa escuridão até nossas pupilas se dilatarem ao máximo.
Tateei até a porta onde ele estava parado de pé.

Olya fez um movimento tão lento e macio que parecia nunca acabar. Ele desvirou a chave que trancava a porta. A porta lentamente se abriu sem o menor ruído. Ele abriu uma greta e senti o cheiro do mofo entrando na sala. Estava bem mais frio lá fora do que na parte de dentro.

Ele me deu dois tapinhas no braço e eu entendi o recado. Segui Olya com a mão no ombro ele. Ele era bem habilidoso em descer as escadas. Eu quase caí duas vezes, mas fui firme atrás dele. A luz da lua cheia iluminava de tons prateados o interior do castelo, por onde penetrava através das frestas. Os únicos sons eram pequenos estalinhos que davam quando pisávamos em cacos de vidro. Chegamos na frente da sala do cinema. Olya me deu os dois tapinhas e entendi que agora era cada um em sua missão. Ele correu na direção dos fundos da tela de projeção.

Eu esperei como havíamos combinado. Me esgueirei até uma lateral perto da entrada do castelo. Eu consegui ouvir os gritos dos macacos ao longe. Tão longe, que pareciam estar há quilômetros de distância.

O tempo parecia não passar. Ouvi os passos ecoando no parque. Era Olya correndo até a atração dos piratas.

Fiquei esperando minha deixa. O radio que eu trazia na mão estava no volume mínimo e chiava baixinho.  O tempo foi passando e nada acontecia. Comecei a temer que algo poderia ter dado errado. O russo não estava dando nenhum sinal no radio. Eu meti a mão na cintura e peguei o revólver. O plano era nunca atirar, a menos que fosse extremamente necessário, mas eu me sentia mais confortável com aquele negócio na mão.

Olhei a lua no céu. Ela brilhava sobre o esqueleto da enorme roda-gigante ao longe. Perto do castelo estava quase tudo sem luz. Umas lâmpadas verdes bem longe iluminavam a área do parque aquático.  Os grilos e rãs ecoavam nas proximidades do fosso e dava para ouvir o barulho das aves noturnas lá para os lados do lago. Era como estar numa floresta. Pensei na minha casa e no conforto que estava me esperando. Pela demora, minha mulher já devia ter avisado a polícia. Mas eu havia cometido a burrice de não dizer a ela onde exatamente estávamos. Mesmo que ela avisasse a policia, eles não teriam onde procurar além disso, certamente diriam a ela sobre a “regra das 48 horas”, onde a policia nada faz esperando que as pessoas eventualmente apareçam.

Ela também com certeza não daria mais detalhes, uma vez que sabia que o que fazíamos no canal não era exatamente dentro da legalidade. Invadir propriedade particular pode dar merda. Todos sabíamos e corríamos os riscos…

— Socorro! Socorro!

Inesperadamente, aqueles gritos ecoaram no parque. Era uma voz que eu conhecia.

Era o Bob!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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