Matrix carioca

Eu não sei se em todos os estados do Brasil é assim. Mas pelo menos no Rio é. Eu me preocupo com uma série de fatores que afetam a vida das pessoas a minha volta. Os mais graves são resultantes da perversa desigualdade social que predominou no Brasil inteiro por séculos e está desencadeando um tipo de zona social, um caos urbano com crianças dormindo nas ruas, mendigos extorquindo trabalhadores, assaltos, seqüestros, golpes, faccionalização da geografia da cidade e muitos outros problemas sérios que infelizmente, não parecem ter solução tão cedo.

A reboque disso tudo, está a cidade. Ela, a cidade do Rio manifesta os sintomas dessa doença social de uma maneira visível, embora nós que passemos o dia de cá para lá, não nos apercebamos de tal fato, inertes em nosso mundinho, ou excessivamente atentos com medo dos garotos que jogam limão para cima no sinal.

Me parece inegável que cada pixação, cada depredação de telefones públicos, de paredes residenciais, cada um dos bilhões de cartazes convidando para forrós, bailes funk e pagodões pé de morro são gritos desesperados de socorro, talvez os últimos suspiros de uma cidade doente, em estado terminal.

Eu olho para cima e o que vejo já não é mais o céu e sim uma mancha esfumacenta que já foi azul. Abaixo disso o que eu vejo são fios e cabos.

É a matrix.

O individualismo e o descaso humano está fazendo com que tornemos o mundo cada vez mais igual ao mundo pós apocalíptico de Matrix. Estamos nos tornando robôs individualistas, presos em nosso universo de diversões televisivas e relacionamentos virtuais. A tevê nos propicia distração, esvaziamento mental e nos mantém hermeticamente alheios a realidade a nossa volta. Pra que viver e sofrer na pele se dá pra sentir como é vendo no BBB? Deixamos o mundo real e seu sofrimento, pobreza, desgraças e infelicidade para lá. Até os carros estão usando filmes escurecidos. Os rádios e alto-falantes são cada vez mais potentes para aniquilar o som do lado de fora. Tudo isso meticulosamente pensado para isolar os motoristas do mundo real, gerando uma cápsula que é extensão de sua prisão residencial com telas de galinheiro nas varandas, insulfilm nos vidros e de preferência em andar alto para não escutar barulho da rua.

As maquinas de autosserviço ganham cada vez mais espaço, os ônibus já estão sem o cobrador, daqui a pouco estão sem motorista. Os bancos estão com menos caixas humanos e mais caixas eletrônicos. As revistas falam do mundo global, das ações, da economia de mercado. Enquanto isso os pequenos mercados de esquina fecham as portas engolidos por baleias multinacionais do setor que exploram crianças na China para atender aos desejos de produtos cada vez mais baratos.

Os vizinhos tornaram-se completos desconhecidos, e passamos a chamar as pessoas por “cara”, “amigo”, caramada, “cumpadi” ou simplesmente de “ow”. Os nomes estão em decadência. É a decadência do individualismo. Somos referidos como uma massa. Somos pensados politicamente como uma massa e o pior de tudo é que nos comportamos como uma massa amorfa de desejos e intenções.

Nas eleições, nos dirigimos como bois ao matadouro e votamos eletronicamente em qualquer um ou em ninguém, alheios ao fato de que maliciosamente essas duas opções foram feitas para beneficiar um sistema safado que coloca políticos que não receberam nem o votos dos próprios pais no governo.

Os jornais repetem-se em uma ladainha criada na base do corta e cola. Há muito que a realidade é pasteurizada para o consumo humano. As comidas estão vindo prontas.Os alimentos são geneticamente alterados ou hormonalmente injetados para crescerem rápido, branquinhos e macios.

A realidade está em extinção.

Fotos: Christopher Griffith

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. olá!
    fiquei dez dias sem passar por aqui e estou surpresa com as mudanças. o autor do blogue mudou? com certeza não é o mesmo estilo. que estranho! volta, autor antigo! =)

  2. Isa o autor continua (e sempre continuará) sendo eu mesmo, Philipe Kling David.
    O estilo muda de um texto para outros, lógico. Afinal, não sou papagaio que repete sempre a mesma coisa. O mundo gump é um blog autoral, o que significa que eu escrevo nele do jeito como me sinto. Escrevo o que penso. Nem sempre é engraçado, nem sempre é irreverente. Mas sempre é de coração.

  3. Não é tão ruim assim não. Relaxa. O problema é que você só está ressaltando os pontos ruins das mudanças atuais, também existem os bons.

    Um deles é que a tevê que menciona, por mais zumbificada e apelativa que esteja ficando, também tem, lentamente, se extingüido em lugar da Internet.

    Outro é que o distanciamento das pessoas favorece o maior respeito mútuo. Se a pessoa é de outra religião, homossexual, se usa cabelo esquisito, se tem família, tudo passa a ficar menos relevante. Esse fenômeno acontece primeiro nas grandes cidades, depois passa para as menores.

    Os alimentos industrializados e remexidos? Podem até em sua maioria serem excessivamente açucarados, engordurados e cheios de aditivos. Mas também aumenta a oferta, incluindo a de alimentos enriquecidos (talvez geneticamente) para terem mais nutrientes, serem mais completos, fazer mais bem à saúde. Tem-se que saber escolher.

    As amizades eletrônicas podem parecer mais secas, mais voláteis, mais efêmeras. Mas ainda são amizades, e delas pode resultar uma combinação de interesses mais perfeita, pois você tem uma gama maior de pessoas com quem se relacionar. Se você tem idéias sobre tomar banho de chapéu ou ler Carlos Gardel, vai certamente encontrar gente semelhante na Internet.

    Não entendo por que esse afã de achar que o passado é sempre melhor e que as mudanças vão acabar com o espírito das pessoas. Há 20 anos atrás as pessoas pensavam isso, e há 40, e há 60…

  4. Gostei d+ do seu texto. Sucinto, claro e conciso.
    Além de externar o seu sentimento com sinceridade.
    Concorto com tudo o que vc disse e sei sua intenção é excelente.
    Todavia sou otimista, estamos bem perto de ficarmos cada vez melhor.
    Temos as ferramentas para isso e sempre consiguimos nos superar, principalmente quando pessoas especiais como vc estão procurando fazer isso.
    LPA.

  5. Tudo é resultado, talvez culpa, da má educação, ou melhor, da total falta de educação do brasileiro, desde o mais pobre e humilde, passando pela classe média e com terminações na classe rica.
    SÓ TEM GENTE SEM EDUCAÇÃO.
    Gente sem educação só faz questão de consumir, de ter, de engordar a porca até estourar.
    Não fazem questão de uma coisa chamada planejamento urbano, espaço social, crescimento ordenado, racional, planificado.
    a preocupação do brasileiro é ter carro, ter casa, ter dinheiro – não importa se esteja respirando fumaça preta ou que esteja morrendo de cirrose, de cancer, de diabetes.
    Não faz questão de amizade com ninguém, de uma boa conversa, de civilidade – ele quer é carro!
    Morra o mundo que eu não me chamo Raimundo! Isso somos nós, esse monstro pós era industrial e ( não massificação ), mas sim liquidificação.
    Ao menos aqui em Sorocaba, onde a prefeitura pôs a mão está ordenado.
    A prefeitura é boa, o prefeito é esforçado e faz boas escolhas, até onde dá.
    Mas tem favela também.
    E até aqui em casa, o gatão mia já faz mais de 5 anos. Miaaaauuuuuuuuu…

  6. Cara gostei muito do seu texto, tanto que repassei para alguns amigos.
    Essa realidade que se apresenta hoje não é nada mais ou nada menos do que o resultado de anos e anos de um padrão de vida decadente e vazio.
    No meu modo de ver as cidades estão se tornando ingovernáveis, se olharmos para dez anos atrás a maioria das coisas pioraram e tendência e piorar mais ainda.

    Toda essa tecnologia que dispomos hoje está se perdendo em um emaranhado de ambições e desejos de ser cada vez melhor que o ser humano ao lado, parece ser instintivo.

    Precisamos voltar a ser humanos enão máquinas, já dizia Charles Chaplin
    “Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.
    mais do que de máquinas, precisamos de humanidade.
    Mais do que de inteligência, de afeição e doçura.
    Sem essas virtudes, a vida será de violência
    e tudo será perdido.”

    Parabéns pelo texto

  7. Muito bom o texto, cara. Uma das melhores críticas que já li aqui, competindo direto com “Adolescentização na TV”.

    Concordo com o que disse, inclusive há coisas ali que eu não havia parado pra pensar, como a questão do isolamento nos carros pelo insufilm e som alto.

    Só uma sugestão: Você podia acrescentar algumas hipóteses par ao porquê deste comportamento humano, sob a ótica da psicologia. Creio que há muito que podemos aprender com os seusconhecimentos =]

  8. [quote comment=””][…]Essa realidade que se apresenta hoje não é nada mais ou nada menos do que o resultado de anos e anos de um padrão de vida decadente e vazio.
    No meu modo de ver as cidades estão se tornando ingovernáveis, se olharmos para dez anos atrás a maioria das coisas pioraram e tendência e piorar mais ainda.[…][/quote]

    Apesar de ter sido solenemente ignorado pelo Odir, já tendo respondido o que ele disse antes de ele dizer, insisto em meu ponto. Não há decadência, há mudança. Algumas coisas pioram, outras melhoram, e quando já estamos acostumados a algo só conseguimos enxergar a parte que piora, trancafiados que estamos nessa nossa “Matrix ideológica”.

    [quote comment=””][…]hummmm. Acho que sim.
    Tenho que pensar. Acho que dá pra ligar isso com a “Teorioa popcorn”. Acredite, existe uma teoria com este nome.[…][/quote]

    Então porque, ao invés de usar a psicologia convencional e sua teoria popcorn, você não adota um paradigma mais ousado, o da psicologia evolutiva?

    Por exemplo, nossa espécie passou milhões de anos em tribos que raramente passavam de algumas centenas de pessoas, e todos os rostos que víamos eram conhecidos, diferente de hoje com suas megalópoles e completa anonimidade das pessoas. Dá pra trabalhar isso e entender disso muita da angústia da modernidade.

    Mais ainda, por que é que nossa dieta é uma porcaria e nos causa tanto transtorno? Porque evoluímos em um mundo em que carboidratos eram raros e difíceis de obter e por isso desenvolvemos uma compulsão muito grande por alimentos doces. Daí bem a obesidade, daí vem a idealização da magreza como conceito de beleza por ser difícil de adquirir e muito mais coisa pode ser explicada por aí.

    E, claro, existe muito mais a considerar, mas isso foi só pra exemplificar. O que quero é evitar que fique um festival de chorões lamentando o mundo e não o compreendendo direito. É claro, eu também imagino que como psicologia evolutiva é algo virtualmente desconhecido da massa hoje em dia, a análise acabe ficando meio superficial. Mas seria um primeiro passo.

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