Laerte-se e a Careca do Will Eisner

Ontem por acaso assisti ao documentário Laerte-se que tem no Netflix.

Laerte é o cartunista que declarou-se uma mulher transgênero quando já era um homem de meia-idade. Havia se casado – e se separado – três vezes. Já tinha três filhos quando resolveu que agora seria uma mulher. Direito dele, não critico. Não acho bonito, louvável nem condenável. Sou formado em Psicologia, e já li (pra caraleo) sobre a sexualidade humana, de modo que na atual conjuntura, a sexualidade alheia não me interessa nem um pouco, não me afeta, não me gera curiosidade nem repulsa. É como um cara falar que torce para o Quinze de Piracicaba. Se a pessoa mudar para o Náutico, ou para o Ferroviária, isso muda o que? Pois é. Nada. E acho inclusive escrota essa coisa mongol de criticar quem faz isso ou aquilo com relação à sexualidade, uma vez que se o cara é adulto e paga as contas dele, ninguém tem nada a ver com isso. Mas apesar disso, o mundo é cheio de fiscal do brioco alheio.

Como sou fã do Laerte desde o tempo que ele desenhava na Circo, e já tendo lido praticamente a obra inteira dele, e conhecendo o Laerte ao ponto dele me deixar fazer um filme de um quadrinho chamado “Moto”, publicado na Piratas do Tietê (Moto, o filme é uma obra nunca terminada porque pra isso não teve dinheiro, mas pra coisas assim sempre tem) .

Frame do meu curta em parceria com a Groia filmes de Juiz de Fora

Então eu fui animado para ver esse documentário, não apenas por ser fã do que ele já fez, mas por imaginar o que ele planeja para o futuro. Achei que fosse uma continuidade de um documentário que também tem lá (recomendo) com o Angeli.

Não era, logo, decepção total e absoluta.

Entenda, não tenho absolutamente NADA a ver com o fato do Laerte resolver virar uma mulher depois do terrível evento da morte do filho dele – esteja diretamente relacionado ou não – [spoliler] ele diz que está.

Eu sou fã do artista, e se ele se considera homem, mulher, sapo, cadeira, robô ou alien, estou – desculpe a franqueza – cagando. Não me interessa, não me diz respeito e de certa forma, até me constrange saber como ele se depila ou que batom ele usa.


Eu fico decepcionado porque esse documentário “Laerte-se” não faz jus nem de longe ao puta artista fodão que ele é. O documentário cai no lugar comum e no caminho fácil de sentar em cima do potencial artístico e sua história profissional riquíssima, para ficar mostrando o Laerte pelado tomando banho ou enfiado num tubinho de lantejoulas dançando na rua com umas 80 drags travestis LGBTs ou seja lá qual for a sigla da moda agora.

O melhor momento desse documentário é quando o próprio Laerte parece dar um toque, “estou me repetindo. Estou falando do que eu já falei”.
Em vez de ser um documentário sobre o Laerte, é um documentário sobre como um cara resolve mudar de gênero e tudo que isso acarreta direta e indiretamente. Logo, o que menos me interessa, porque esse cara do documentário poderia ser qualquer um, qualquer homossexual ou travesti tem essas questões, “boto peito ou não boto?”, “minha família aceitou, não aceitou”, enfim.
Até o subtexto ali é precário e óbvio. Uma casa bagunçada, uma residência em reformas, uma mudança que ecoa e reflete de certa forma as mudanças internas de seu proprietário…

A grosso modo, é como pegar um documentário sobre o Stephen King e passar mais de uma hora vendo ele elucubrar sobre o fato de ser praticamente cego, e falar de forma absolutamente superficial sobre o que realmente interessa a todo mundo, seus livros, sua arte, seu processo criativo. Você acaba e fica com um gosto de: “Porra, fui iludido nessa merda!”
Imagina pegar um documentário sobre o Will Eisner e ver que ele passa o filme inteiro falando sobre como é ser careca, quando ele ficou careca, e sobre como as pessoas acham que ele é careca, mas ele queria era ser cabeludo, e pensa se vai comprar peruca ou não vai, do papel social do careca…

Desculpa. Se o Will Eisner não é só um careca e o Stephen King não é só um proto-cego, não aceito que o Laerte seja vendido somente como uma bandeira de uma causa.

“Laerte-se” é assim, é o caminho fácil, é o óbvio, é a apelação quase panfletária da causa Gay, da causa transsexual, do papel social… Coisa que daria para fazer com QUALQUER outro homem que resolve mudar de gênero. Não estou dizendo que a bandeira não seja importante ou que a causa não mereça mil documentários esclarecedores, abridores de cabeça, pontos de mutação social para o sofrimento de gênero. Mas é fato, desperdiçaram o cara ali.
Agora, como ele criou os Piratas do Tietê, como foi manter uma revista, qual a loucura de viver de quadrinhos nos anos 80, como era sua relação com outros artistas, Angeli, Glauco, Luiz Gê… Como ele/ela virou roteirista de programas como TV Pirata, Sai De Baixo e TV Colosso, drogas, aventuras, suas influências, livros que o marcaram… Qual material ele usa, de onde saiu a ideia para os “Homens Pizza”, os “Palhaços Mudos”… NADA disso existe em Laerte-se.

“Tem um lado exibicionista que fica feliz com isso, mas sugeri fazer um filme sobre ser transgênero, porque não queria que fosse só sobre mim, uma ego trip.” – Laerte

Inclusive mostra uma exposição dele e essa parte se limita a um lance dele sendo abraçado por fãs e dizendo que se considera uma fraude (um caso típico da síndrome do impostor) que corresponde a essa autopercepção pela qual uma pessoa se considera menos qualificada para uma determinada função, cargo ou desempenho que seus companheiros, e percebe sua criação como cheia de defeitos e problemas aos quais teme que em algum momento alguém perceba sua imperfeição. Obviamente que tudo isso é decorrente de um complexo de inferioridade que pode ter raízes profundas e inclusive ser um elemento constituidor daquele indivíduo, como as figurinhas feias que ninguém gosta, mas que querendo ou não, são uma parte integrante de um álbum de figurinhas, e sem as quais, ele nunca será efetivamente completo. Aliás, isso é um aspecto da personalidade absolutamente corriqueiro na ampla maioria dos artistas.

Mas de volta ao Laerte-se, a melhor coisa desse documentário é a animação de algumas poucas tirinhas, e ainda assim, tudo nesse contexto do conflito dessa imagem/gênero que tragou a vida dele para um loop eterno. É inegável que essas questões são importantes para ele e por isso transbordam no seu trabalho.

“Não sou transexual. Nunca me declarei assim. Estou sob um guarda-chuva que inclui a travesti, o crossdresser, a drag queen, o drag king, e estou satisfeita com isso.” – Laerte

Mas e a virada no trabalho que ele deu, mudando brutalmente não apenas a estética como sua atuação profissional? Limitado e monodimensional, o filme fala pouco ou praticamente nada nessa mudança no trabalho dele e o próprio Laerte dá a deixa perfeita para que isso seja explorado, mas a direção não morde a isca, não vai nesse sentido apesar da deixa. Ela se foca na questão da imagem, o que é curioso na medida em que o início do filme mostra Laerte meio que queixoso, meio inconformado com isso, e apesar de relutar se entrega, (mais de corpo que de alma)  ao exibicionismo de sua nova sexualidade.

Mesmo a parte que todo mundo sabe, que é o fato do Laerte sempre ter sido comunista, membro do partidão, ilustrador para a Cut, e outros sindicatos nem sequer é explorado, é dado um viés modernoso, quase de cima do muro, que um incauto poderia olhar e até pensar que Laerte é de centro.
Mas é inegável refletir sobre isso na perspectiva de que talvez, para a ampla maioria das pessoas seja muito mais importante ver o Laerte como uma bandeira de uma causa, (legítima, é verdade) em detrimento ao artista genial que está ali por trás, obliterado pela questão da eterna ressignificância social, que engolfa, traga tudo que ele foi e pior, tudo que ele será ainda.

Então é isso, não é o documentário que eu gostaria de ver e não faz jus ao protagonista, mas atende a um certo público. Pra quem sabe da existência dele mais pela Revista Caras do que pela revista Circo, ele serve bem.

* Ps: Me refiro ao Laerte no masculino sim. Passo a fazer o contrario se ele me pedir, ou quando a manicure dele conseguir tb.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Pela frase destacada, acho que ele quis assim, exatamente desse modo, então só se pode lamentar mesmo. Mas que é um puta saco uma obra virar “apelo à causa”, isso é mesmo, seja qual for a causa. .

  2. Poxa cara, ainda bem que você fez esse post. Já tinha até adicionado o documentário na minha lista pra assistir depois. Vou tirar de lá…

    • Eu sugiro que vc veja. Apesar que não é o que eu esperava, penso ser um documentário valido sobre um homem que teve um grave problema com o luto do filho e decidiu “morrer junto” de uma maneira simbólica, e que geraria um belo estudo psicanalítico. A dor por trás do que parecem meras escolhas é absolutamente palpável.

  3. Sou mulher e muito me incomoda isso de se identificar como uma aos 60 anos de idade.
    Nem sei o que é me sentir mulher, nasci assim.
    Já me aconteceu tanta merda por ser mulher (insira aqui agressão física, sexual e moral) que parece absurda a ideia de que “basta você se sentir que você é”. Não funciona assim.
    Ainda bem que Laerte mesmo não se diz transexual, no máximo gosta de performar o estereótipo feminino, mesmo.

  4. Concordo muito com o texto do Felipe Lima que publicou pelo face e gostaria de reforçar algumas afirmativas dele , mesmo achando que vc Philipe, não vai mudar muito de ideia.

    Cara eu amo o conteúdo que você produz aqui no blog, acompanho há muuuuuuuuito tempo —-> Também acompanho o blog há muito tempo, hoje estou com 29 anos mas leio desde os 19 (talvez). Não sei quanto tempo tem que vc escreve, mas sempre quando lembro dou uma passadinha por aqui. Já tive vontade de comprar um Alien que vc fez, mas vc não me respondeu o e-mail falando o preço rs.

    […] talvez seja hora de repensar e estudar algumas questões que provavelmente você nunca dispertou interesse para assim compreender o documentário e principalmente as questões abordadas nele —-> No seu post vc bate muito na tecla de chamar a Laerte no masculino. Você copiou um trecho em que ela se trata como mulher. Pra que teimar? “Só chamarei “o” Laerte de “a” Laerte se ele bater lá na minha casa e me pedir.” (???). Pôxa, é tão penoso pra vc isso? Sério? Pra eles isso é muito, mas muito importante.

    Mas encare esse documentário como um start para você aprender e criar empatia para essas questões que ainda são obscuras em sua mente ——> É importantíssimo para esse público (transgêneros) que exista um documentário de uma cartunista famosa falando apenas sobre sua identidade de gênero. Muitos suicidam pq não aguentam o tranco da falta de aceitação social, outros tantos tomam porrada todo dia por pura transfobia e nessa leva muita gente não sobrevive. É humilhação e rejeição o tempo inteiro. Então, mais empatia com quem ta sofrendo pra caralho com algo que eles não tem controle na rédea: a própria identidade.

    Um abraço!

  5. Philipe, eu concordo inteiramente com o que tu falaste. A questão da sexualidade do Laerte interessa, até certo ponto e deveria constar como parte integrante de tudo o que ele é. Mas não parece nem de longe ser o que define o Laerte. Me pareceu um pouco oportunista o documentário. Afinal de contas, o Laerte não ficou famoso por se travestir. Ficou famoso, e internacionalmente, pelo seu talento. Talvez tenha conquistado mais notoriedade depois que o tema da sexualidade dele se tornou público. Senti falta de ver mais do processo criativo dele, da cabeça dele funcionando, de tudo aquilo que o trouxe até aqui. Achei rasinho.

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