Histórias do Mundo Gump (P/Juvenal)

Aqui está a imagem sugerida pelo Juvenal. Impressionante como é esse negócio de blog. Escrevi a proposta, fui ver os meus emails e para meu espanto já estava lá a resposta do Juvenal com uma imagem difícil pra dedéu.
Então è isso aí. Vou honrar a palavra e vamos ver no que vai dar. Seja o que Deus quiser:

O VELHO ENCOSTADO NO MURO

Eu voltava de uma festa na casa da Regininha. Tinha sido uma festa legal para os padrões de festa que a Regininha dava, uma vez que não houve tiros, nem mortes ou brigas. Regininha era tranquila, mas os amigos dela costumavam encher o pote logo cedo e não demorava muito a um meter uma garrafada na cara do outro.

Mas como eu disse, aquela havia sido uma festa relativamente fácil. Já passava da meia-noite quando decidi ir embora. Ok, admito que o fato de ter pouca mulher e uma baranga que mais parecia um submarino e que começou a dar mole pra mim precipitaram minha ida. Para não cometer o egocídio de pegar a mulher mais feia da parada, resolvi dar a retirada estratégica.

Eu tinha ido pra lá com meu primo Wagner, que tem um fusquinha camarada, que quando pega e resolve funcionar é uma mão na roda, mas pelo que eu pude ver, na escuridão da pista de dança, o Wagner tava atracado com a irmã da Regininha e não ia rolar carona pra nenhum cueca como eu. Solução é ir de viação canela mesmo.

Na saída do condomínio, não se via viva alma na rua. Tenho medo de ladrão, como todo mundo. Meus amigos, meus parentes e conhecidos do trabalho não sabem, mas a verdade é que eu “me pélo de medo” de fantasma.

Desde criança, tenho medo de que uma criatura grotesca com a cara deformada pela decomposição surja no meio da madrugada no meu quarto puxando o meu pé. Dormi com a luz acesa dos três aos quinze anos de idade e agora com 35 já apago a luz, mérito da Tia Neuza, minha psicóloga, mas ainda levo um tempão pra dormir.

O pior de ter que voltar pra casa sozinho na escuridão da noite é ter que atravessar o cemitério. Quando dá eu sempre evito aquele caminho, mesmo que pra evitar eu tenha que passar perto de um bairro favelado, onde tem um matagal onde desovam os bandidos do tráfico.

Se bem que, se um bandido desses aparece pra mim? Tem coisa pior que ver um fantasma bandido? Só se fosse um fantasma-bandido-argentino.

Dou uma risadinha e continuo meu caminho ladeando o muro branco quase infinito do cemitério. Posso ouvir o som do vento balançando as plaquinhas de metal. É um som triste, quase um gemido. O vento, né? O vento sopra e passa pelas tumbas, fazendo um assovio fino, gelado. O vento dos defuntos é o mesmo vento que bate em mim.

Mais à frente, perto do ponto do ônibus está um senhor. Senhor idoso, de uns oitenta anos, apoiado, coitado, na bengalinha fina que quase se enverga com o peso dele. Me lembro de Charles Chaplin. È um Charles Chaplin de cabelos e roupas brancas. Lembrou-me um velho malandro, tipo o Dicró.

– Boa noite tio. – Digo como quem vai passando. O velho apenas olha pra mim e balança lentamente a cabeça. Eu passo por ele e continuo minha longa caminhada até em casa.

– Tem horas aí filho? – Diz o velho. Olho no relógio mas é difícil de ver no escuro. Corro até o poste na beira da calçada pra ver na luz.

– Duas e meia, tio.

– Nossa, já é tarde.

– Pois é, tio. Esperando o ônibus né?

– O ônibus já não vem mais. Vou ter que ir a pé. – Diz ele gemendo e levantando o corpo com dificuldade.

Penso em dar as costas e seguir o meu caminho. Mas pensamentos severos me afligem. Me sinto um infeliz idiota de dar as costas assim a tão doce figura. Um velhinho fraco, de bengalinha. Não posso evitar oferecer uma ajuda. Então, torcendo para ele recusar, pergunto:

– O senhor vai pra longe? Quer ajuda, tio?

– Ah, quero sim. Que bom um rapaz disposto a ajudar quem precisa. No meu tempo eu ajudei muita gente, mas sabe como é, o tempo passa e todo mundo hoje quer as coisas rápido demais, não tem lugar para nós aqui… – E desatou a falar enquanto eu ia ao lado dele, pensando em várias coisas, na vida, na morte da bezerra… Até que a mulher baranga não era tão ruim assim. Agora eu tô aqui, babá de velho.


O velho era uma máquina de falar, meu. Falou de tudo, contou a vida toda, desde a guerra, quando tinha sido pracinha.


Comecei a desconfiar que o velho talvez tivesse medo de andar sozinho à noite.

Passamos em frente ao portão do cemitério. Sempre aberto. Desde que o prefeito assumiu e destituiu o zelador, por questões políticas e o cemitério da cidade passou a ficar escancarado dia e noite. Também, quem iria querer roubar os defuntos, né? Virou atalho, passagem entre o bairro do centro e o Limoeiro, o bairro onde eu moro.


– Meu filho, vamos por aqui. – Disse o velhinho apontando a bengalinha fina para o caminho pelo cemitério. – Por lá eu vou ficar muito cansado. è longe e eu não sou mais aquele rapaz. Isso me lembrou certa vez que… – E desandou a falar.

Olha, em condições normais de vida, eu não iria aí de noite, mas acompanhado de tal frágil figura, não resisti e como estava interessado na história sobre como ele ganhou no bilhar a mulher que casou, resolvi ir com ele.

No caminho, o tiozinho contava suas aventuras sexuais. Pra meu espanto, o velho de oitenta anos era mais versado em sacanagem que o marquês de Sade. Quando íamos pela escuridão, em meio a catacumbas fracamente iluminadas pela luz difusa da lua, uma coisa preta voou perto de mim e eu dei um grito. Soltei a franga. Gay mesmo. Nossa, eu pareci até o Clodovil em propaganda de sabonete.


O velho assustou e quase caiu, coitado.

– Calma meu filho. Falou rindo. Era uma coruja.

– Coruja? Ah, é mesmo. Coruja.

– Tá com medo de que, garoto?

– Ah, é que esse negócio de cemitério… Cemitérios me incomodam.

– Que nada. Só tem gente morta aí. Gente morta, flores secas e um monte de lápide. Umas bem feias por sinal.

– É que… – Hesitei por um segundo, pois talvez o velho fizesse chacota de meus medos, o que seria deveras humilhante. Entretanto, o bom velhinho transmitia uma enorme segurança e resolvi me abrir com ele: – …Eu tenho medo de fantasma. Sempre tive. – Falei cabisbaixo.

O velho ficou quieto por um tempinho, meio que consternado. Andamos alguns metros em silêncio. Eu apenas ouvia o som dos grilos e bichinhos da madrugada. Ao longe, vi um vaga-lume.

O velho não falava nada e eu vi que ele sentiu-se mal por ter rido de mim e eu podia senti-lo pensando algo para me dizer, para me acalmar. E então ele falou.

– Sabe garoto, eu vou confessar uma coisa. Eu também, quando era da sua idade, eu morria de medo de fantasma.

– Mas eu tenho medo desde criancinha, tio. Acho que esse medo não vai acabar nunca. Eu dormia de luz acesa até fazer quinze anos… Faço terapia e tudo mais.

– Ih, que coincidência. Eu também tinha medo assim. Quando eu era vivo, morria de medo de fantasma.

O velho disse isso e sumiu bem na minha frente.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. “Soltei a franga. Gay mesmo. Nossa, eu pareci até o Clodovil em propaganda de sabonete.” Haushaushushushush… :D
    Cruzes manaaaa…Tinha que vir de você mesmo!
    Você é HILÁRIO!
    Valew!

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