A caixa – Parte 32

 

Talvez, eu corresse. Talvez eu desse um abraço nele. Talvez eu desmaiasse, fulminado pela emoção de encontrar meu amigo completamente normal, fumando um maconhão jogado no sofá com aquele robe de seda que ele tinha comprado num brechó para uma festa à fantasia que nunca foi e passou a usar para ficar em casa.

Eu não fiz nada disso. Minha reação até me espantou:
-Fala sua bicha!  – Eu disse, enquanto trancava a porta.
Ele não disse nada. Estava sentado no sofá, contemplativo e ali se manteve.

O arrepio ainda me percorria a espinha e o coração estava a mil. E se não fosse ele? E se fosse a velha? E se fosse um fantasma?
Eu também, não disse nada e com o coração quase saindo pela boca, passei pela sala adentro direto para o meu quarto. Peguei uma toalha e me tranquei no banheiro. Liguei o chuveiro para dar um som de fundo e me sentei no vaso sanitário.
-Puta que pariu! Puta que pariu, puta que pariu! – Eu repeti baixinho, num mantra bizarro, enquanto esfregava meu cabelo freneticamente.
Aquilo não fazia sentido. Não podia ser ele. O banheiro em pouco tempo ficou repleto de vapor.

Resolvi parar de desperdiçar água. Tirei a roupa e entrei no chuveiro.
Eu precisava pensar e molhado, eu fazia isso bem. Seria um fantasma? Eu teria tido uma alucinação?
Me parecia lógico imaginar que talvez eu tivesse sofrido uma pequena alucinação. Eu estava há um bom tempo sem comer, ao ponto de terem me dado soro na casinha atrás da igreja.
E outra, vai que me deram outro troço? Eu não tinha como saber.

Vai ver era um efeito colateral de algum remédio. De udo não sei se eu me intrigava mais de dar de cara com alguém que estava morto ou com minha reação de aparente indiferença com relação a isso.

Então, uma outra ideia me ocorreu… Uma ideia tão estranha que mal podia projetá-la em pensamento, mas que a grosso modo, era: “Será que eu voltei no tempo?”

Mas logo depois me dei conta de que aquilo era impossível, porque ao sair da caixa eu estava em contato com Leonard, e só realmente falei com ele depois que o cabelinho… Bem… Morreu.

Eu saí do banho e me enxuguei já sentindo o medo me invadir. No banheiro eu estava a salvo do que quer que fosse aquela situação, mas quando eu saísse dali…  Ia ser complexo. Teria que enfrentar o Cabelinho, fosse ele o que quer que fosse. E se eu saísse do banho e ele não estivesse ali? Eu começaria a confrontar a possibilidade de que eu tinha ficado maluco. Pior ainda seria se o Cabelinho não fosse o Cabelinho, mas sim um daqueles bichos tipo uma larva grande vivendo dentro dele.
Eu precisava testar. Saí com a toalha amarrada na cintura e atravessei depressa o corredor que dava para o quarto. De esguelha, tentei ver se o cabelinho ainda estava na sala. Pela fumaça, estava.

Me tranquei no quarto. A respiração ofegante. Eu realmente não sabia o que fazer. Vesti as roupas e sentei-me na cama, pensando em como lidar com aquela situação.
Enquanto eu pensava sobre como iria fazer para enfrentar a situação, foi a situação que me enfrentou. O telefone tocou lá na sala, e eu me lembrei no ato que eu tinha desligado aquela bosta da parede, então só podia ser ele que religou o aparelho. Eu ouvi o cabelinho, ou a coisa que se parecia com ele atender o telefone lá na sala. Eu não ouvia o que ele dizia. Será que era a velha ligando para saber de mim?

Então ouvi passos vindo pelo corredor. Eu me afastei da porta, temendo que algo estranho ocorresse. E o que ocorreu foi que cabelinho batucou na porta do quarto.
-Quê? – Eu berrei, fingindo que me vestia.
-A Jane! Pra você. – Ele falou. Então saiu. Eu sei que ele saiu porque ouvi seus passos no corredor e a porta da geladeira abrindo com seu rangido peculiar.

Fiquei ainda um tempo, pensando que era um truque. Quando enfim tomei coragem, abri a porta e passei pela entrada da cozinha. Ali, atrás da porta da geladeira aberta, eu o vi mamando uma lata de cerveja.
Corri pra sala e peguei o telefone.
-Alô? – Eu disse, já impaciente, sabendo que a maluca da Jane ia me encher o saco.
-Seu filho duma égua! – Ela disparou do outro lado.
-Que foi, porra?
-Você não tem mesmo vergonha nessa sua cara né, Anderson? Como que você some assim, bate o telefone na minha cara…

Plá!

Bati o telefone na cara dela de novo. Eu quase consegui sorrir imaginando que a cada segundo seguinte, a Jane devia estar ficando mais e mais puta. Naquela altura ela estava tentando telefonar novamente, mas precisaria se conter e tentar parar de tremer de ódio e apertar as teclas certas.
Não deu outra. O telefone tocou. Deixei tocar cinco vezes.
-Alô?
-Anderson! Seu fiado! Seu puto! Seu filh…

PLÁ!

Bati o telefone na cara dela de novo. Eu podia fazer aquilo o dia todo. Sentei no sofá ao lado e fiquei esperando. Mentalmente comecei a regressiva: 5…4…3…2…

O telefone tocou novamente. Eu percebi que estava usando a encheção de saco da Jane como mecanismo de fuga da situação de ter que lidar com um cara que era meu melhor amigo, e que estava morto, mas que ao mesmo tempo, estava vivo, e bebendo todo o goró da casa lá na cozinha. A situação do Cabelinho era tão estranha e assustadora que me entreguei de corpo e alma a atormentar a maluca da minha ex-noiva pirada.

-Fala ô piranha! – Berrei.
Só ouvi uma série de gritos sem nexo do outro lado. Ela estava tendo uma crise. Gritava palavrões tão altos que mal dava para entender.
Apareceu o cabelinho na porta do corredor que dava pra sala. Meu sangue gelou. Ele estava com os olhos esbugalhados, apontados pra mim. Veio lentamente andando na minha direção. Fiquei quieto ouvindo, pensando em como eu teria que sair correndo dali. Mentalmente fiz o meu trajeto pelo corredor, saltando os degraus das escadas, no maior desespero.
No fone ela berrava que ia me matar, que ia acabar comigo destruir a minha vida… Ah, se a babaca da Jane soubesse que eu já estava com a vida naquela condição ela teria semancol e largaria do meu pé.

Cabelinho parou a dois metros de onde eu estava. Nós nos olhávamos fixamente e ele parecia até uma estátua de cera. Trazia uma lata de cerveja fechada na mão. Ele levantou o braço como um robô e me ofereceu a latinha.
Hesitei um pouco, meu braço estava morto e eu não ia ter como pegar e falar no tel. Agarrei o tel com o ombro e a cabeça e peguei a latinha com a outra mão.

-Você não vai porra nenhuma! Que merda que você quer? Hein? Cala a boca! Cala a sua boca! Na tua! Na tua bunda! Deixa eu falar, porra! Sua maluca do caralho! Você quer o que? Eu não vou voltar pra você… Ah, me odeia? Então ta me ligando pra quê, caralho? Não sei, porra! Você que me ligou! Não, não tinha outra, porra! Quantas vezes tenho que repetir isso? Eu cansei, eu não gostava de você, Jane! Aceita isso, porra! O que? Vai matar é a puta que te pariu! Você não mata nem barata! Você não rasga dinheiro, rasga? Maluca é quem rasga dinheiro. Não, não quero saber. Porra vê se não enche! Vai se foder! – Botei a latinha sobre a mesinha do tel, agarrei o telefone e…

PLÁ! – Bati pela terceira vez o telefone na cara dela.

-Deixa fora do gancho. – Disse o cabelinho com aqueles olhos vidrados. Definitivamente, aquele não era ele. Aquele não era o jeito dele. Cabelinho teria pego o telefone , ia ficar zoando a Jane, ele era foda em zoar os outros. Ele era o ser mais irritante da face da terra, ainda mais com gente que ele detestava, como a Jane. A jane tinha um ciúme doentio e esse ciúme se estendia a toda e qualquer mulher que estivesse a meio metro de mim, extensivo ao Cabelinho. Toda vez que ela ligava e eu estava jogando o Nintendo com ele, ela dava crise. Foi assim, de gotinha em gotinha, até encher o baldinho e eu perder definitivamente todo e qualquer sentimento que nutria por ela. Mulher chata ninguém merece. Ainda passei uns dois anos aguentando aquela pentelha e suas doideiras, mais por pena. Deu no que deu. Cabelinho, quando era vivo e não aquela coisa, esse arremedo de gente que estava parado segurando a lata de cerveja e me olhando friamente, costumava dizer que eu estava “criando um monstro”. Talvez fosse esse o meu talento secreto: Criador de monstros.

O telefone tocou novamente.
-Quem está? -Já perguntei sabendo que era ela.
-Eu te maaaatoooo! – Ela gritava.
-Não fode, baranga! – Berrei.

Plá!

Dessa vez eu deixei o telefone fora do gancho.
Tentei aparentar normalidade com aquela situação. Agarrei a latinha com meu braço funcional, fui até o sofá e sentei.
O Cabelinho me acompanhou com a cabeça, tal qual um manequim. A situação era tão arrepiante ao ponto de eu sentir uma dor nas bolas do meu saco.

-Então? Tu vai pra faculdade hoje? – Perguntei, tentando desesperadamente disfarçar que eu tremia.
-Facul? Não… – Ele disse.
Eu já estava esperando a hora que algo ia sair de dentro do peito dele, sua cabeça explodiria ou algum outro bagulho digno de um filme de terror iria acontecer. O clima era de completo estranhamento.
Sem saber como reagir, eu resolvi engolir o cagaço e meti na lata:
-Por que você tá estranho, meu?
-Estranho? Eu?
-Não, o Jimmy Hendrix. – Eu disse, apontando o quadro do guitarrista na parede.
-Sei, lá. Estou meio… Com sono. – Ele disse. Colocou a latinha de cerveja pela metade na mesa e foi andando para a porta, como um robô.
-Ei! Tu vais aonde, Cabelinho?
-Vou… Comprar… Cerveja. – Ele disse. Parecia embotado. Quase como se estivesse dopado. Saiu, batendo a porta atrás dele. Fiquei imaginando o que diriam os vizinhos ao ver o Cabelinho sair com aquele roupão ridículo pelo prédio afora. Claro que ele não ia comprar cerveja. Estava saindo para ganhar tempo. Pareceu surpreso com minha pergunta.
Dei um tempo e saí no vácuo. Desci pelas escadas, correndo. Eu precisava chegar no hospital antes que o horário de visitas acabasse.

Felizmente consegui pegar o primeiro taxi que passou.
Quando cheguei no hospital, Faltava meia hora para encerrar as visitas.
Fui direto para a recepção, onde perguntei da Mara.

-Ela teve alta. – Me disse a moça.
-Sabe, é que eu fui assaltado, e levaram a carteira com o endereço dela. – Eu disse.
-Sinto muito, mas não podemos dar essas informações.- Ela respondeu, quase como um robô. Pensei que eles deviam dar muito essa justificativa. Sem saber onde Mara morava, como eu ia achar ela? Em plena capital? Era mais fácil achar a Mara na caixa. Se o Cabelinho não tivesse se transformado naquela coisa zumbiesca na minha casa, eu poderia pedir a ele para tentar o contato com a tal Priscilla, que certamente saberia onde a Mara morava.
-Ok. Desculpa aí então. – Eu disse, meio cabisbaixo.

Fui andando para a porta do hospital quando uma mão pesada acertou meu ombro.

-E aí Mike Tyson! – Era o enfermeiro.
-Opa!
-Tua mina ficou boa, né? Que bacana! O pessoal disse que foi milagre, rapaz! Foi uma festa. Até demos pela sua falta…
-Cara… cê não tem ideia.
-Que foi?
-Fui… Atropelado! -Menti. Eu não tinha como falar que estava em cabo frio invocando um caçador de bruxas que lutou com um cara com uma minhoca na garganta e depois fui parar numa caixa onde um monstro comeu o meu braço.
-Atropelado?
-Na Paulista. – Menti descaradamente para conquistar a simpatia do enfermeiro.
-Que merda, hein? Machucou muito?
-Não muito, mas bati a cabeça e fiquei uns dias fora do ar. – Eu disse.
-Será que não foi o playboy? Desde a surra que eu e os caras do quinto andar demos nele, ele não deu mais as caras aqui. -Disse o enfermeiro.
-Meu, o lance é que nesse acidente, me roubaram.
-Puta merda! Nem atropelado os manos perdoam!
-Será que não tem como tu me dar uma ajudinha aí?
-Tipo o que?
-É que eu perdi o endereço da Mara… Tava na minha carteira, e quando roubaram…
-Sei qual é. A dona Neuza não quis te passar os dados, né?
-Pois é.
-É que não pode mesmo, fera.
-Que merda isso… Como vou fazer?
-Calma, Tyson! Eles não podem dar pra VOCÊ. Mas eu sou funcionário, chapa! – Ele disse, virando as costas e indo até o balcão. Ele ficou lá uns dez minutos. Sentei na recepção e peguei uma revista ensebada para ler. Eu estava tão focado no lance do endereço da Mara que nem prestei atenção no que tinha na revista.
Então, ele veio com um papel na mão impresso em uma impressora matricial.
O enfermeiro me estendeu o papel e lá estava o endereço dela.

-Porra não acredito, cara. -Eu estava super feliz. Dei um abraço apertado no enfermeiro.
-Calma, calma, Tyson! Jiu Jitsu não, pô!

Agradeci umas mil vezes e corri para a rua, tentando pegar um novo taxi. Dessa vez foi difícil, porque já era em pleno horário do rush e as avenidas estavam todas congestionadas. No caminho da casa, passamos numa floricultura e eu comprei um ramalhete de flores do campo pra ela.
Quando o motorista parou o santana na porta da casa, eu não acreditei.
“Caralho, uma mansão!” – Pensei.
Ela era ricaça! Morava numa mansão com muros altos no Morumbi.
-Tem certeza que é aqui? – Perguntei incrédulo.
-O endereço é esse sim senhor. Disse o taxista gordinho que suava em bicas.
Agradeci, paguei a corrida e desci do carro.
Fui meio sem graça até a porta. Como eu ia fazer? Eu não tinha planos, não sabia como seria dali pra frente.
Toquei a campainha de bronze, esculpida em forma de cabeça de leão, junto a um portão enorme estilo americano.
Ouvi cães latindo lá dentro. A casa era um colosso enorme, e dava para ver pela imensidão do muro. Uma voz metálica ecoou no interfone junto à porta.
-Pois não?
-Oi… Eu sou o Anderson. Um amigo da Mara.
-Da Mara?
-Sim…
-Só um minuto que eu vou chamar. – Disse a voz no interfone.

“Ai meu Deus! Ai meu Deeeeus!” – Agora era a hora do vai ou racha. Eu não sabia o que ia acontecer e não podia nem prever.
O tempo pareceu passar dez vezes mais devagar. Eu estava começando a decidir o que deveria fazer pelo meu amor próprio. Não sabia se devia me resignar e ir em bora ou ficar ali e tocar a campainha quantas vezes fossem necessárias até a Mara aparecer.
Então ouvi um som de porta se abrindo lá dentro e ouvi passos ecoando no chão de pedra.
“Está vindo! Está vindo!” – Pensei com a respiração presa. Apertava firme o ramalhete nas mãos. Tinha medo de não impressionar.

A porta se abriu de supetão.
-O que você está fazendo aqui, seu bosta? – Era o Playboy, com o dedo indicador afundando no meu peito.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. cara o Anderson não é o cara que se possa chamar de sortudo definitivamente, mas é um personagem cativante, e meu o cabelinho zumbi??? cara da muito top.

  2. Cara, como é que o Anderson consegue dinheiro para andar de táxi pra cima e pra baixo? Não vi ele nem uma vez ir ao banco ou ao caixa eletronico.já que você é tão detalhista (como tem que ser, é claro, um bom escritor como você é.)
    Mas tá tudo redondinho, por enquanto…continue!

    • Se não me falha a memória, ele foi ao banco 24 horas na rodoviária, e em alguma parte lá atrás eu disse que ele tinha uma grana guardada, que vinha juntando para viajar para Portugal e ver a mãe dele. Nos anos 90, havia bem menos bancos e terminais de saque espalhados, de modo que era mais comum que as pessoas fizessem saques de dinheiro em mais quantidade e guardassem. A maioria da galera, aliás, não deixava a grana parada no banco, porque a inflação era galopante, não havia ainda o Plano real. Todo mundo recebia e queimava rapido a grana, porque no dia seguinte ela valia bem menos. Por isso muita gente trocava em dolar e deixava guardado em casa. Outra coisa que era muito mais comum que hoje era o uso do talão de cheques.

  3. Kkkkkkkkkkkk, ele é muito fraco, depois do verme e vendo o Kbelinho Zumbi, ele deveria imaginar que a Mara poderia também ser um! Sei não… Acho que o Play é escuto e a Mara vai atrair ele para poder arrancar todas as partes dele para a velha!

  4. Espero que ele dê um soco certeiro na garganta do infeliz, seguido de outro no nariz e um chutão nas bolas.

    Ou que corra mais rápido que o Usain Bolt!

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