A caixa – Parte 14

-Parado aí ladrão! – Ele gritou.

Olhei para trás assustado e vi um homem apontando uma escopeta pra mim. Eu não disse nada. Levantei os braços e assim fiquei. Ele continuava a apontar a arma pra minha cara. Vi que tremia. Era um senhor de uns setenta anos, mas não era o Alfredo. Parecia que ele não tinha dentes na boca, mas depois percebi que havia apenas um. Os olhos estavam arregalados, como os de um doido. Ele usava uma blusa de flanela escura bem puída e um bermudão jeans. Não consegui ver o que ele calçava porque naquela altura eu estava usando toda minha capacidade mental para explicar a ele o que eu fazia ali.

-O senhor é parente do seu Alfredo? – perguntei tentando quebrar o gelo.

O homem baixou a arma e pareceu mudar de expressão.
-Você conheceu o seu Alfredo?

Eu não sabia como dizer, então, como eu sempre fazia quando não sabia o que dizer, menti:
-Eu sou o sobrinho-neto dele. Vim lá dos Estados Unidos quando soube que o “vovô Fredo” faleceu. – Eu disse numa interpretação digna de um Globo de Ouro (Oscar só se eu tivesse conseguido chorar, mas não rolou). De qualquer forma, o sujeito da arma caiu completamente no meu caô.

-Ah, garoto. Você é doido, sô. Quase que eu te meti bala. – Ele disse baixando a arma.
Eu sorri pra ele e ele arrematou:

-Eu não dou tiro em ninguém tem mais de vinte anos. Fiquei com medo de ter que dar mais um nessa altura do campeonato.
-O senhor é? -Perguntei.
-Casimiro, satisfação! – Ele disse, me estendendo uma mão dura e ressecada como uma lixa, repleta de calos. Vi no ato que estava lidando com um homem da terra.

-Prazer, seu Casimiro. Eu sou o Anderson. -Disse, apertando a mão dele.
-Eu sou vizinho aqui. Então você veio lá dos Estados Unidos é?
-Pois é. Eu soube. Ele tava no hospital em coma, né?
-Ah, garoto… Foi triste, coitado. Ele caiu no banheiro. Cansei de falar que tinha que botar um tapete nesse banheiro. Ele nunca me escutou.
-E aquela mania de acordar de madrugada pra ouvir o trem? – Perguntei tentando demonstrar alguma intimidade. E funcionou lindamente. Casimiro abriu uma gargalhada que ecoou na casa inteira, e só então que eu vi o tal dentão solitário no canto da boca dele. Casimiro parecia até um duende de filme. Baixinho, a cara toda recortada de rugas e pés de galinha e uma calvície acentuada.
-Ele nunca deixou de fazer isso, garoto! Quando o trem não passava ele ficava igual como se diz, igual a “siri na lata”!
-Bom, então o senhor pode me dizer onde que ele tá enterrado?
-Ah, sim, claro. Ele foi enterrado no jazigo da família, no cemitério municipal Pio XII. Fica lá perto do rio. Sabe chegar lá?
-Ah, tranquilo, que eu tô com um taxi me esperando la perto da pista. – Eu disse, já saindo do quarto. Então voltei e disse:
-Seu Casimiro, o senhor se importa de eu levar a foto?
-Claro uai! Pólevá! Ele é seu parente, né?
-Pra eu me lembrar dele.
-Coisa linda isso… -Ele disse, como quem conversa consigo mesmo. – … Veio lá dos Estados Unidos só pra ver a sepultura do avô. Isso que é família!
Eu agradeci e saí. Desci as escadas e parei na sala. Dei uma última olhada. Os quadros nas paredes, as peças de locomotiva enfeitando um móvel antiquado da década de 60. Eu estava tendo uma última dimensão da alma do meu amigo.
-Fica com Deus! – Seu Casimiro gritou com a carabina numa mão enquanto acenava com a outra.
-Amém! – Eu gritei de volta.
-Quando quiser aparecer para um café, eu moro naquela casa lá, ó. Perto das árvores. – Ele disse, apontando com a arma.
-Sim senhor, um abraço! – Gritei, já entrando no taxi.

-Era ele? – Perguntou o Cléssio.
-Era. -Eu disse, mostrando a foto.
-E pra onde vamos agora?
-Cemitério Municipal. – Respondi.

Minutos depois estávamos chegando em frente ao grande muro, imaculadamente branco do cemitério Pio XII. Cléssio parou o taxi em frente a uma mercearia chamada Santa Rita. Eu desci e pedi que me esperasse. Parei na entrada do cemitério. Entrei e fiquei algum tempo procurando o jazigo. Quando finalmente encontrei, era uma caixa de concreto, porcamente pintada de azul. Rezei um Pai Nosso pela alma de Alfredo. Fiquei ali por um tempo, em silêncio, ouvindo o canto dos passarinhos. O cemitério era bem tranquilo.

Fiquei pensando naquela situação. O Guru existia, o Alfredo era real. Eu mesmo havia presenciado aqueles dois nas caixas. Logo, era óbvio que Mara era real. Ela devia estar em coma em algum hospital. Mas eu não tinha certeza, embora todos os fatos apontassem isso como uma forte possibilidade. As últimas palavras de Mara para mim foram “Socorro”. O Mungo havia arrastado ela, e eu não sabia para onde. Talvez a tivesse matado. Mas eu não tinha certeza. Me sentia quites com Alfredo, mas em débito com Mara. Ela não me saía da cabeça desde que havia saído da caixa, e após confirmar que Alfredo era real, me parecia muito provável que Mara também fosse. Senti uma tremenda urgência e ao mesmo tempo me senti impotente. Mara ainda estava na caixa? Estaria morta? Eu não podia ficar sem saber.
Voltei para o carro. Enquanto Cléssio dirigia e volta para o hotel, eu me peguei pensando em que situação curiosa, ter conhecido Alfredo numa caixa de aço e algum tempo depois, ir reencontrá-lo numa nova caixa, dessa vez de concreto.

Fiz check out no Hotel e peguei o ônibus de volta para a capital. Tentei dormir na viagem, mas eu só pensava em Mara.

Quando cheguei em casa, casado da viagem, carregando minha mochila com uma meia dúzia de roupas, dei de cara com Cabelinho dormindo no sofá. A poça de vômito fedida que estava em baixo deixava claro que ele tinha enfiado o pé na jaca no fim de semana.
-Que manguaça hein? – Eu disse, sacudindo a cabeça dele pelos dreads.
Cabelinho fez uma cara feia, contraiu os olhos e gemeu qualquer coisa incompreensível lá.

Fui para meu quarto, sentei à escrivaninha e comecei a escrever no note o meu artigo. Eu inventei um monte de coisa lá, com base nos livros que levei e nem encostei, pois não tinha muito tempo a perder em burilar o artigo.
Algumas horas depois, enquanto eu escrevia, senti uma estranha sensação ruim. Era a mesma sensação que eu tinha na caixa. A sensação que o Mungo me dava. Então, uma sombra cambaleante apareceu atrás de mim. Eu quase dei um grito, mas quando vi, era o Cabelinho.

-Qual é brou? Tu viajou? – Ele perguntou com o bafo horrível de pinga.
-Cara… Nem te conto. Mas antes, faz o seguinte, Toma um banho lá. Olha pra você, meu. Todo vomitado. Puta merda.
-Falôôô… – Ele disse, saindo do quarto emborcado numa curva. Se trancou no banheiro e dali a meia hora voltou. Parecia mais acordado. Mais disposto.

-Pô, meu! Tu tá escrevendo essa porra aí ainda? – Perguntou apontando a tela.
-Meu… Esquece o artigo. O que eu tenho pra te contar é muito, muito louco, companheiro.
-Calma. Antes eu que preciso te contar uma parada mega bizarra. Você não vai acreditar, véio!
-Tu comeu uma mulher.
-Porra, fala sério, cara! Não é isso não, meu!
-Então alguém te comeu? – Eu perguntei rindo. Era engraçado como cabelinho ficava puto quando eu zoava a virgindade dele.
-Ah, não fode, porra. Calmaí. Calmaí que eu tenho que te contar isso… Quer cerveja?
-Quero. – Eu disse. Segui Cabelinho até a cozinha, onde ele abriu a geladeira e pegou duas latinhas. Jogou uma pra mim.
Enquanto eu tentava abrir a latinha, Cabelinho contava sua notícia bombástica.

-Meu… Saí com a Cíntia… Muito foda a mulher, cara. Mó filé! Ela tem uma amiga que é super gostosa, cara. Tá ligado assim, Luana Piovani? Não, não… É tipo mil vezes mais gata. Ela è uma dentista lá. – Cabelinho contava em detalhes completamente dispensáveis sua noitada com a tal Cíntia e sua amiga gostosa. Aquilo me aborrecia tremendamente, pois eu precisava ficar esperando acabar a aventura dele para contar minhas pesquisas em Cruzeiro pelo cara que não devia existir, mas que existia e estava morto.

-Mas a questão é: Você comeu ou não comeu?
-Veja bem…. Quase. Estou em vias de resolver isso. – Ele disse, meio sem graça entre goladas de cerveja.

Eu comecei a rir. – “Em vias de resolver”?

-Pô, meu, mas o lance não é esse não, cara.
-Véio, conta logo essa porra que você quer contar que eu tenho que te contar uma parada também, porra.
-Tá, tá. Se prepara que isso vai ser bizarro, meu cumpadi…
-Conta logo porra!
-Então, tu sabe da tal gostosa que é amiga da Cíntia, né? essa que eu falei que era tão gata que…
-Sei, pô. Que que tem a dentista?
-Ela chama Priscila. É muito lindona mesmo. Então a gente estava lá conversando no bistrô e tal, papo vai, papo vem, eu me liguei numa cicatriz que ela tinha no pescoço, tá ligado.
-Hã! Continua.
-Eu perguntei, assim, por curiosidade, né? Daí ela contou que sofreu um acidente de carro, ela e mais uns amigos. Eu já ia mudar de assunto quando a Cíntia perguntou pra ela de uma tal Mara, que estava no carro no dia do acidente. A Priscila disse que ela ainda está em coma, meu! Lembrei de você na hora!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Tem uma parada no seu texto que eu gosto de fazer nos meus…
    A não ser que realmente conheça Cruzeiro, você investe um tempo pesquisando as localizações e detalhes para dar mais realismo a coisa toda.
     
    Na dúvida fui lá olhar e…
    http://migre.me/cVLtl

    Parabéns Phillipe! É um trabalho que quase ninguém nota, e muito menos valoriza. Mas só prova o quanto você capricha nos seus contos!

  2. Agora ele vai ter que encontrar o Guru pra pedir pra ele ajudar a tirar a Mara da caixa também *-*

    Muito boa essa história, muito boa MESMO.

  3. Aguardando ansiosamente pela parte 15, mas é bem bacana mesmo dar esse toque realista na história como a mercearia na frente do cemitério, os pontos da cidade, também gosto de fazer isso nos meus contos.

  4. Seria daora se o seu conto “esbarrasse” com outro conto já terminado. Acho isso foda pra caralho quando vejo na televisão, e acontece muito pouco. Um exemplo sem nexo e base, apenas para exemplificar:
    Imagina se o Alfredo esbarra com a história de Leonard na busca de kuran. Mas algo bem superficial sabe, só para na hora que os leitores lerem aquilo, abrirem os olhos e se espantarem. Até mesmo pro leitor se aprofundar na historia da caixa, se identificando com o personagem “eita porra, eu tb ja li os contos do mib..” etc etc

  5. Nossa comecei a ler a série toda ontem e só parei pra dormir!Muito incrível o que você consegue fazer, e o cara da foto da parte 13 é realmente bem parecido com um Jacques Costeau gordo e acompanhado da esposa, algum truque?

  6. VÁ PRA PQP! ESSE CONTO É MUITO ‘MANEIRO’. Mas tem uma coisa: se o cara não reencontrar a “MARA” e recuperada para dar pelo menos um “fincão” nela, eu paro de ler os seus contos! rsrsrs!

  7. QUINZE!! QUINZE!! QUINZE!!

    Hoje, de manha, tentei acessar o site pra ver se já tinha o 15 mas não conseguia. O jeito foi perguntar no facebook se alguém sabia se já tava no ar. Pô, Philipe, libera logo o 15 aê, véi, ta mó frio, aqui.

  8. Quisera eu saber contar uma estória tão bem quanto você, Philipe. Já escrevi dois livros e os dois são uma tremenda €$¥%#. A idéia para os livros até que eram boas mas eu não soube desenvolver bem.

    A propósito, você trabalha em que?

  9. Cara, seus contos são ótimos!!! Como todos por aqui, entro de 5 em 5 minutos pra saber da parte 15, a expectativa chega a ser desesperadora kkkk… Parabéns Philipe! Seu talento para criar essas personagens é realmente invejável, sempre nos prendendo totalmente. Flw

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