Zumbi – Parte 4

David ficou parado, não ousou olhar para trás. Ficou ali, olhando a barra de chocolate na mão.Então escutou uma voz vindo das costas, que disse:

– Quem é você, ladrão filho da puta?

David fez menção de olhar para trás, mas a pessoa socou o cano da arma na nuca dele, machucando-o. Antes que David ousasse dizer qualquer coisa, a pessoa tornou a falar.

– O gato comeu sua língua, seu rato? Coloque as mãos onde eu possa ver.

David jogou o chocolate no chão e abriu os braços para cima. A pessoa puxou pela gola do sobretudo, tirando-o da mesa e empurrou contra a parede.

Nisso, ele ouviu a voz de mais duas pessoas. Uma era de uma pessoa mais jovem, e a outra de um senhor.

“Quem é ele, Sam?”

“Já olhamos tudo, Sam. Não tem  ninguém com ele. O cara está sozinho.”

-Quem são vocês? – Perguntou David Carlyle, tentando falar com a cara na parede.

-Essa pergunta é minha, seu folgado. O que você está fazendo aqui? Como entrou aqui? Como encontrou a gente?

David ia começar a responder, quando sentiu que estava sendo revistado.

-Opa! Olha só isso aqui! – Disse o homem mais velho.

-Uau, esse troço abre um buraco numa pessoa! – Disse o jovem.

O tal do Sam parecia o mais forte e o mais valente. Sem dúvida era o líder. Falava pouco, mas sempre num tom autoritário. Os outros pareciam querer agradar ao Sam.

– Olha aqui, Sam… Lanterna, chave de fenda… Alicate… Ei, o que é isso? Seringas. Será remédio?

-Que porra é essa, meu?

-Olha, eu… Eu não… – David tentava se explicar. Sabia que eles tinham achado uma das ampolas da droga do Mr. Big, que ele enfiara nos bolsos.

Sam o virou com violência. E aquela foi a primeira vez que David viu a cara dele. Era um homem forte, alto, completamente careca, com um grande bigodão de motociclista. Ele parecia ter quase dois metros de altura, e usava uma calça jeans surrada e uma camisa florida estilo havaiano.  No meio do peito cabeludo, uns dois cordões de ouro grossos. Usava botas de motociclista. Sam Colocou a ampola bem no meio da cara dele.

-Eu sei que que é isso. Você também sabe, né doidão?  -Disse ele com a ampola tão perto dos olhos de David que o fez ficar vesgo. Depois jogou longe. Então virou-se para o idoso:

-Clarck, puxa a manga da camisa dele aí. Assim, isso, pra trás.

Os homens arrancaram o sobretudo de David. Esticaram-lhe a manga e ficaram olhando o braço de David. As marcas dos picos denunciavam sua natureza de viciado.

-Era só o que faltava, né Sam?

-E agora Sam? O que a gente faz com ele?

Sam estava quieto. Não dizia nada. Apenas olhava para a camisa e para o estado geral de David.

-E então, Sam? – Perguntou o jovem. O mais velho o interrompeu.

-Cala a boca, garoto. Deixa o Sam pensar.

-O que é isso aqui? – Perguntou Sam espetando com o dedo de forma agressiva no braço de David. Aquilo doeu muito.

-Ung… – Gemeu David.

-Puta merda, Sam. Ele foi mordido cara. Ele foi mordido! -Assustou-se o jovem. Agora todos olhavam para David como se estivessem diante de um fantasma. Menos Sam, que segurava o pescoço dele com uma mão. Na outra uma escopeta de cano cerrado. E na cintura dois revólveres.

-Calma garoto. – Depois virou-se para David – E então, arrombado? Você foi mesmo mordido por uma daquelas coisas?

-Não senhor. – Disse David. Ele sabia que a coisa não estava boa. Até aquele momento, David não entendia a razão para todos terem medo dele ter sido mordido. Mas o tom daqueles homens deixava claro que não estavam de brincadeira. A chance dele acabar com um tiro de escopeta na cara era grande. Dessa forma, David se esforçou para explicar tudo.

-Olha, desculpa eu ter invadido. Não vi ninguém, eu procurei e…

-Foi mordido ou não foi, porra?

-Nâo, não senhor. Eu me feri quando estava fugindo daqueles… Daquelas coisas mortas.

-Eles te viram?

-Viram, claro.

-Puta merda! Viram como você entrou aqui?

-Ah, não. Não. Isso não viram não senhor. É que eu entrei de madrugada.

-E como você entrou? Senta ali.  – Apontou Sam com a escopeta para uma cadeira.

David sentou-se e os homens ficaram de pé ao redor dele. Durante um longo tempo ele explicou como acordou dentro de um armário, sem saber onde estava. E como fugiu pela cidade sendo perseguido por um cão bravo e por um monte de gente morta. Contou que entrou pelo esgoto, que dormiu no porta-malas de um carro e que abrira caminho na barricada até chegar ao alto do prédio. Disse aos homens que estava tentando encontrar uma passagem que levasse ao predio do lado, onde ele tinha visto a luz das velas. Nisso ele foi interrompido.

-Porra, Clarck! Tá vendo? Eu não disse? Eu não falei? – Reagiu Sam, socando a mesa.

-Desculpa Sam. Mas… Era o Velório da Mimi. Eu achei que ninguém veria.

-Olha a merda aí. – Disse Sam apontando para David.

O tal Clarck baixou a cabeça como uma criança pega em plena peraltice.

-Foi mal, Sam.

-Tinha mais alguém com você lá? – Interrogou Sam. Puxando David pela camisa.

-Não. Não. Eu estava sozinho… Mas eu não entendo. Até agora eu não sei o que está acontecendo.

O jovem começou a rir. Sam olhou pra ele e ele pareceu nervoso, preocupado. Tentou ficar sério.

-Não sabe? – Questionou Sam.

-Eu… Eu realmente era viciado. Eu estava doido demais pra saber. Eu acordei dentro do armário. E aí já estava tudo assim.

Sam andou em silêncio até a beirada da sala e pegou uma cadeira. Trouxe ela até o lugar onde eles estavam. Virou a cadeira e sentou de frente para o espaldar.

-Olha… Seu nome?

-David Carlyle.

-Olha, David. Nós também não sabemos o que aconteceu. Cada pessoa diz que é uma coisa. Uns dizem que é coisa do governo. Outros que foi uma doença. Tem gente que diz até que isso veio num meteoro. Muita gente diz que é coisa dos illuminatis para reduzir a população do planeta.  Cada um fala e pensa a merda que quiser. Foda-se.  Não estou nem aí.

O que eu sei é o que eu vi. E o que eu vi foi minha casa ser invadida por um bando de gente morta, que pularam pela janela, correram para cima dos meus filhos… Não deu pra fazer nada. Foi de madrugada.  Eu tive que fugir pelo telhado. Larguei mulher e crianças para trás. Eram eles ou eu.

No início eram poucos, mas o socorro demorou a chegar. Em poucos dias eram milhares andando pelas ruas, correndo atrás das pessoas, mordendo e gritando como bichos. As pessoas tentaram se esconder, escapar, mas as estradas não deram conta. As ruas engarrafaram e a cada hora que passava, sobrava menos gente viva e tinha cada vez mais gente morta. Foi quando vieram os helicópteros. Jogaram produtos químicos, mas isso não adiantou. Então Surgiram mais e mais mortos, em um numero tão gigantesco que as ruas se tornaram praças de guerra. O exército desembarcou homens vestindo trajes estranhos. Queimaram carros, metralharam os mortos e os vivos. Mas os mortos eram muitos. Os militares recuaram. Não sei pra onde foram.  Fomos abandonados aqui à nossa própria sorte. Tem gente que diz que é no mundo todo. Mas eu prefiro pensar que exista ainda algum lugar sem essa merda.

A coisa espalhou como uma doença. Não tínhamos para onde ir. Os vivos se esconderam onde puderam, mas gradualmente as comunicações saíram do ar e os abrigos foram se reduzindo. Então começou a guerra pela comida. Agora não sabemos mais quantos são. A cada dia temos menos gente viva e mais gente morta.

-Mas então existem outros. Quantas pessoas tem no seu grupo?

-Nosso grupo é de vinte pessoas.

-E este lugar? – Perguntou David olhando ao redor.

-Aqui é nosso centro de provisões. Nós temos pessoas que se arriscam lá em baixo para abastecer as reservas. Eles trazem a comida pra cá. O prédio do lado é onde está o abrigo. Nós vamos e voltamos com o que é necessário. – Disse mostrando as mochilas enormes, cheias de itens. Cada um deles tinha uma daquelas mochilas de acampamento, paradas ao lado da porta.

-Eu posso me juntar a vocês?  -Perguntou David.

Clarck e o garoto olharam para Sam. Ninguém ousava dizer nada.

-Não. – Sam foi enfático e duro.  – Tudo que não precisamos agora é um viciado para surtar e fragilizar nossa posição.

-Mas eu não tenho pra onde ir. Lá em baixo está cheio de… de…

-Não é problema meu. Você invadiu nossa área. Agora vai dar o fora daqui e procurar seu próprio abrigo. O nosso grupo é fechado. -Respondeu Sam, alisando a escopeta.

-Mas eu posso ser útil, Eu posso ajudar. Eu faço qualquer coisa. Olha, eu não uso mais essas coisas, cara.

Sam sorriu e disse apenas:  – É o que todos os viciados dizem.

David olhou para Clarck e para o jovem. Pediu ajuda.

-Por Favor…

Mas os dois olharam para o chão. Ali, a palavra final era do Sam.

Venha, vamos levar ele lá pra baixo. A gente solta ele lá no esgoto e ele dá no pé. Tu vai dar no pé, né doidão? Ou é isso ou vai conhecer a Deolinda.

Clarck e o garoto começaram a rir.

-Quem?

-A arma. -Sussurrou Clarck, apontando para a escopeta de cano serrado na mão de Sam.

-Ah. Tô ligado. – Disse David, sem graça.

Todos colocaram suas mochilas nas costas. Inclusive o velho.

Os homens desciam pelas escadas. O jovem iluminava com a lanterna o caminho à frente. O idoso ia no fim, iluminando com outra lanterna. No meio, iam David e Sam.

Nisso o som de um radio ecoou nas escadas. Clarck pegou o walkie-talkie. Todos pararam. Havia muita estática, mas era possível entender a comunicação.

-Clarck… – Perguntava a voz mecanizada do aparelho.- … Estão por aí? Câmbio.

-Aqui fala Clark. Positivo, cambio.

-Venham depressa pra cá. Temos uma emergência. Cambio.

Sam tomou o aparelho das mãos do idoso.

-Aqui fala Sam, cambio.

-Oi Sam. Onde vocês estão?

-O que aconteceu? Estamos no depósito. Cambio.

-Tivemos problema com o águia de fogo. Cambio.

– Ele caiu? Cambio.

-Negativo, Sam. Problemas mecânicos. Venham pra cá. E o invasor? Era zumbi? Cambio.

-Negativo. O invasor era humano. Estamos nos livrando dele. Cambio.

-Aguarde um minuto, Sam. Cambio.

Sam e os outros sentaram-se nas escadas. O radio agora apenas chiava a estática, que ecoava nas escadas escuras.

Quando o radio interrompeu a estática, voltou com novas ordens.

-Sam. Está aí? Cambio.

-Positivo.

-Sam, última forma… Não se livre do invasor. Traga-o pra cá. Cambio.

-Porra! – Resmungou Sam baixando o radio. Em seguida tentou argumentar.

-Caleb, está aí? Cambio.

-Positivo Sam. Cambio.

-Caleb, quem disse que era pra levar o invasor? Cambio.

-Ordens do reverendo, Sam. Cambio.

Sam baixou a cabeça. Olhou para os dois que iluminavam os arredores com as lanternas. Ninguém falava nada.

– Caleb, estamos voltando com ele. Cambio. – Disse ele, levantando-se do degrau.

-Positivo, Sam. Cambio desligo.  -Disse o aparelho, retornando ao modo de estática.  Sam desligou o equipamento e entregou-o de volta ao velho.

-Vamos, vocês ouviram a ordem. -Sam apontou com a arma o caminho de volta escada acima.

Os quatro subiram pelas escadas escuras de volta ao depósito. Passaram pelo décimo nono andar e chegaram ao vigésimo. No vigésimo andar, Sam pegou um monte de chaves do bolso. Pediu que o rapaz iluminasse melhor e após alguns minutos encontrou a chave que abria o grosso cadeado.

Era o andar da presidência. O andar era finamente decorado, com mármores verdes, piso de granito preto  e detalhes de madeira escura. Os quatro entraram e trancaram a porta.

Eles foram andando até a copa. Nos fundos da copa, havia uma passagem estreita que dava para um enorme aparelho de ar condicionado industrial da marca Hitashi. O aparelho estava todo empoeirado e com fiações penduradas. Na lateral do aparelho tinha três degraus metálicos que deveriam servir para a manutenção. Eles subiram com cuidado e sobre o enorme equipamento, havia um pequeno vão que dava para o lado de fora do prédio. Ali, diante deles, estava uma ponte improvisada com cordas. A ponte se estendia por uns trinta metros, ligando um predio ao outro.

-Tá de sacanagem que eu vou ter que atravessar nisso aí, né?  – Disse David olhando aquilo.

Todos riram.

-É o único jeito, doidão. – Disse Sam.

O jovem foi o primeiro a se aventurar. Ventava muito naquele dia. A ponte de cordas balançava de um lado para outro.

Mas ele parecia não ter medo, ou talvez nem mesmo tivesse consciência do perigo. Adentrou a ponte e com inacreditável agilidade, e mesmo com a enorme mochila preta amarrada nas costas, venceu o percurso rapidamente, chegando ao outro prédio.  David não gostava muito de altura. Nunca gostou. A altura lhe dava náuseas. Saber que teria que enfrentar uma ponte feita precariamente com cordas ligando dois edifícios, a quase setenta metros de altura não era o que ele considerava uma boa experiência.

Clarck foi o segundo a adentrar a ponte. Ele era idoso, tinha por volta de setenta, talvez setenta e cinco anos. Embora aparentasse estar bem de saúde, avançava com uma certa dificuldade, compatível com sua idade.  David não compreendia o que levava essas pessoas a arriscarem-se tanto. Sob sua ótica correr tamanho risco para estocar comida num lugar seguro era tão perigoso quanto correr nas ruas cheias de mortos famintos.

Quando Clarck chegou do outro lado, Sam fez sinal para que David atravessasse. David estava morto de medo.

-Bora doidão. Não temos o dia todo! – Disse Sam, empurrando-o pelas costas com a escopeta.

David segurou firme nas cordas. Olhou para a frente. O vento balançava a ponte violentamente. Olhou para baixo, viu o jardim lá em baixo. Alguns carros. Ao longe via a avenida, os carros capotados, o lixo sendo levado pelo vento e os mortos parados ao sol.   Pareciam pequenos bonequinhos vistos daquela altura.

David colocou o primeiro pé à frente. Olhou para o outro lado e viu o velho Clarck e o garoto rindo dele. O garoto gritou que era para David não olhar para baixo.

David não gostava que rissem dele, e começou vagarosamente a avançar com cuidado. O vento era fortíssimo. David achou que ia morrer. Bastaria um pequeno descuido e a queda era fatal.

Quando chegou do outro lado, foi ajudado pelos outros dois para subir no parapeito onde eles esperavam.

Enquanto eles aguardavam Sam atravessar, David aproveitou para perguntar porque guardar a comida num lugar tão complicado.

-É que no início, haviam os saqueadores. – Disse Clarck.

-Saqueadores?

-Sim. Quando os grupos se dividiram e quando acabou a comunicação, começou uma espécie de guerra. Cada grupo precisava garantir a sobrevivência dos seus. As pessoas se desesperaram, porque não haveria comida para todos. Os grupos escolheram batedores que adentravam a cidade e traziam comida. Mas tinha grupos que preferiam roubar dos outros. Esconder o alimento era a saída. Assim, apenas nós três do nosso grupo que sabemos onde está a comida, e caso o prédio seja invadido por saqueadores, eles não saberão a real quantidade de alimentos, medicamentos, armas e provisões que possuímos. Se formos roubados, vão catar apenas o estoque da semana.

Agora David começava a achar a ideia da ponte insana algo engenhoso.Mas ele ainda tinha uma curiosidade.

-Senhor, quem é Mimi?

O velho pareceu ser pego de surpresa. Contraiu o rosto. Olhou para o horizonte em silêncio. O vento despenteava seus cabelos brancos. O rapaz, pousou a mão no ombro de Clarck e olhou para David. Foi ele quem disse.

-A Mimi era a filha dele.

-Ela morreu de que?

-Caiu da ponte.

-Essa?

-É.

David não sabia o que dizer. Clarck não olhava mais pra ele. Olhava para baixo. Foi então que David notou e olhou.  E viu uma grande poça vermelha bem na reta do meio da ponte.

-Que merda. – Disse David.

-Que merda. -Disse o jovem.

-Que merda. -Disse Clarck. Limpando os olhos.

-Vocês atravessam sempre nesta coisa?

-Sim. Sempre. A única passagem que existe é esta. A outra é uma saída, pelo esgoto da garagem. Foi por onde você veio, certo? -Perguntou Clarck desembargando a voz.

-Isso mesmo.

-Você deu sorte, menino.

-Por que?

-Porque a garagem está cheia de explosivos. Sob cada carro existe uma bomba. Querosene, gasolina, óleo diesel… Enfim. Nós usamos isso para evitar que caso os mortos descubram a passagem, consigam subir. A bomba pode ser acionada a distância com um walkie talkie modificado. Mas é uma opção de último caso.

Sam já havia cumprido a travessia e após passar para o outro lado do parapeito, apontou com a arma o caminho.

-Venha. – Disse ele.

Os quatro seguiram Sam.Eles chegaram até uma porta, que estava trancada. Sam abriu o cadeado, revelando a entrada das escadas.

Desceram pelas escadas, iluminando a escuridão com as lanternas.

À medida em que desciam, David sentia o ar mais pesado, mais quente. Sam, o garoto, David Carlyle e Clarck chegaram a uma porta no quinto andar. Sam deu três socos na porta. O eco se espalhou pelas escadas.

Após algum tempo, um barulho de uma grossa tranca estalou e a porta se abriu. Ali estava Caleb.

Caleb era um jovem magro. Tinha um boné de baseball e vestia uma jaqueta militar. O rosto queimado de sol indicava sua procedência árabe.

Sam entrou, segurando David pelo braço. Ao entrar no lugar, David se espantou ao ver que a sala, uma construção bem mais ampla que a do outro prédio, estava repleta de cordas, do qual pendiam lençóis, dividindo os ambientes em dezenas de pequenas cabanas. Parecia uma mini-cidade.

-Todos moram aqui? – Perguntou ele. Mas Sam não lhe deu atenção. Avançou por entre as cabanas carregando a mochila. Logo surgiam diversas pessoas, todos rostos desconhecidos. Todos queriam saber quem ele era, o que ele fazia lá.David se viu cercado por crianças, velhos, homens e mulheres.

Então, uma voz potente soou acima de todas as outras. Era o Reverendo.

As pessoas se viraram e David deu de cara com um homem negro, de barba branca, curta e rala. Não era tão alto quanto Sam, mas tinha um barrigão de papai-noel.

-Deixem o menino em paz. – Disse o Reverendo sorrindo. O bolinho de gente se diluiu rapidamente.

O reverendo estendeu a mão.

“Reverendo Nicolas. Muito prazer.”

David retribuiu o aperto de mão. A mão do homem era fortíssima e esmagou-lhe os ossos com uma clara demonstração de força e entusiasmo.

” Por favor, meu jovem. Me acompanhe.” – Disse ele, agarrando David pelo braço e levando de volta as escadas.Enquanto andava perguntava como ele estava, se estava com fome, ferido ou se queria água ou refrigerante.

David seguiu o reverendo pelas escadas para o andar debaixo. Eles desceram, acompanhados de pelos menos uns três caras, que portavam armas.

Chegaram no terceiro andar e havia um sujeito armado na porta. Ao ver o reverendo ele acenou com a cabeça e abriu o cadeado. Era uma sala escura.

“Venha, David.  Siga-me. Vou lhe mostrar uma coisa.” – Disse o Reverendo.

O jovem acompanhou o homem para dentro da sala escura. Os homens armados foram atrás. A porta se fechou atrás deles, numa batida que ecoou na alma de David.

Ele não via nada, mas sabia que o Reverendo estava ao seu lado.

Após alguns minutos, uma luz fraca se acendeu. Era uma lamparina a gás.  E David viu uma cadeira no meio da sala. Era só isso. Uma cadeira no meio de uma sala enorme, sem janelas.

-Senta ali, meu garoto. – Disse o reverendo.

David estranhou, mas obedeceu a ordem daquele homem gentil.

Lentamente os homens que estavam atrás do reverendo cercaram a cadeira. E David ficou na frente do Reverendo Nicolas.

-Você está confortável? – Perguntou o Reverendo.

-Sim senhor. – Disse David.

O Reverendo acenou com a cabeça, e um homem forte agarrou David pela garganta. Começou a estrangulá-lo. David, pego de surpresa, tentou se mexer, mas enquanto o homem o estrangulava, os outros começaram a amarrá-lo na cadeira.

David não consegua respirar, sentiu tudo rodar. Sua visão escureceu e ele desmaiou.

Acordou com um balde de água jogado na cara.

Ele não entendia o que estava se passando. Não sabia direito onde estava. Um cara agarrou a cara dele e apontou na direção do reverendo.  Agora o Reverendo estava na frente dele, parado. A postura impávida de um ditador.

-E aí? De que grupo você é?

-Hã? Eu? Desculpe. Eu não sou de nenhum grupo. Estou por minha conta.

-… – O reverendo se manteve em silencio. Então olhou para o homem atrás da cadeira e novamente acenou com a cabeça. O cara deu um soco na cara de David. Aquilo doeu. Sua boca encheu de sangue ele e sentia vontade de vomitar. As cordas estavam apertadas demais e uma delas passava bem em cima do machucado no braço. David cuspiu o sangue no chão branco. O Reverendo voltou a falar.

-Vou perguntar novamente. E agora você vai abrir esse bico. Como que você descobriu o depósito, moleque? – A postura empolgada e cordial do Reverendo Nicolas dava lugar a um homem bruto, assustador, com cara de maníaco.

David foi violentamente espancado durante um longo tempo. Após a cadeira cair em meio a  surra, foi chutado varias vezes e a cada desmaio, era acordado com baldes d´água na cara. Vendo que ele não ia falar, o Reverendo disse apenas:

-Cuidem dele. É de vocês. – E saiu. Deu dois socos na porta. E o homem da escada abriu. O Reverendo saiu e David ficou ali, cercado por aqueles homens estúpidos. Pareciam soldados. Um deles, que vou chamar de Joe por puta falta de outro nome,  tinha cara de gerente de banco. Usava o cabelo penteado pro lado e um óculos de aro grosso, colado com fita crepe. Este era o mais violento.

Além de Joe, estava Jack. Este era um sujeito magro, porem forte. Ele mais parecia um jogador de basquete, com braços compridos e olhos avermelhados.   Ao lado de Jack estava Kirby, um cara baixinho, meio ruivo, cheio de sardas, que tinha duas enormes orelhas de abano, e que usava um chapéu ridículo de caçador. Kirby era o mais estranho, pois tinha cara de pirado e vestia uma camiseta do tipo I love NY, cinto e botas de cowboy . Parecia um completo boçal, mas segurava um fuzil, sempre apontado para a cabeça de David Carlyle.

David examinou cada um daqueles homens. Eles estavam parados ao redor dele. Saboreavam aquele momento. David sentia um medo absurdo de morrer.

Os homens se entreolhavam em silêncio. Parecia que estavam escolhendo quem iniciaria a sessão de pancadaria que estava prestes a rolar naquele lugar sem janelas. Foi Kirby que começou a falar.

“Eu acho que ele não vai colaborar.” – Disse Kirby. Nisso, Joe deu um tapão na cabeça de David.

-Ung! – Resmungou David com dores.

O sujeito que parecia um jogador de basquete ficou mudo o tempo todo. Apenas assistiu quieto.

Joe voltou a espancar David com socos. Mas Kirby interferiu.

-Calma, cara. Calma. Eu tenho uma ideia!

-Que?

-Vamos descer ele pro primeiro andar. – Disse com um sorriso maníaco.

Todos os homens se entreolharam. E então sorriram maldosamente.

Minutos depois, David amarrado com fios elétricos era empurrado com brutalidade pela escada abaixo. Chegaram em uma porta de grades grossas. Kirby pegou a chave e abriu o cadeado. David foi levado até uma espécie de platô, que dava para um pátio interno, ligado à rua por uma espécie de praça, onde corpos pútridos boiavam num chafariz.

Traz a corrente lá. – Disse Joe ao Jack. O homem mudo virou as costas e sumiu atrás de umas pilastras. David levou dois chutes na boca do estômago. Estava caído. Cansado. A boca não parava de sangrar. Seu corpo inteiro doía.

Ele não conseguiu mensurar quanto tempo se passou na sessão de espancamento no segundo andar. Ela só parou quando Jack chegou com uma mala preta de rodinhas. Ao abrir, ela estava repleta de uma corrente grossa. Os homens esticaram a corrente e deram voltas no corpo dele. David queria implorar por clemência, mas estava fraco demais. Seu corpo estava mole. Os homens pareciam se divertir.

Amarraram seu corpo com a corrente e Jack e Kirby começaram a içá-lo no vazio. Lentamente, foram descendo a corrente, e quando ela finalmente  parou de descer, David abriu os olhos e viu que estava a menos de meio metro do chão, pendurado como um boneco, de frente para a praça.

Ele sabia que seria uma questão de tempo até que algum morto acabasse por vê-lo. O ser horrendo iria emitir um daqueles gritos grotescos  e em pouco tempo uma multidão de corpos iria se aglomerar á sua volta, tentando morder sua carne.

David quis gritar, implorar por socorro, mas sabia que aquilo apenas apressaria seu fim, atraindo os mortos mais rapidamente.

O que ele fez foi ficar parado, como se estivesse morto. O tempo passou, e as correntes agora pareciam se entranhar na carne dele, tamanha a dor que David Carlyle sentia.

O vento balançava aquele ioiô-humano de um lado a outro. E ele já não ouvia mais os risos e gargalhadas dos três malditos.

O sol estava se pondo, levando consigo os últimos raios de dia. David notou a sombra azulada dos prédios lentamente se movendo pela rua. Ao longe, via os corpos parados em pé na avenida.  David sabia que se ele podia vê-los, também poderia ser visto.

O tempo avançou lentamente. Cada segundo era um suplício. Cada minuto uma eternidade. David tentava não pensar naquela situação. Passou a olhar o chão. Os ladrilhos da praça. Os corpos boiando no que outrora tinha sido uma bela fonte de frente para uma sorveteria cara.

E agora ele estava ali, como uma carne de açougue, balançando pra lá… Balançando pra cá… Pra lá e pra cá…

Então ele ouviu um ruído. Apenas moveu os olhos. E viu a cerca de uns dez metros um morto que cambaleava lentamente em sua direção.

David sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Não havia como se mover. Nem como gritar. O cadáver deu uns três passos e estancou. Agora ele estava parado, mas eventualmente, olhava na direção de David.

O vento da noite entrava pelo vão dos prédios, e balançou a corrente. David continuou se fingindo de morto.

Então o zumbi subitamente se moveu.

David soube na hora que ele havia sentido o seu cheiro, levado pelo vento.

O zumbi andou de modo desconjuntado, gemendo baixinho. Passo após passo, ele veio cambaleando na direção de David. Agora o zumbi estava a menos de dois metros dele. David já podia sentir o cheiro de podre que aquele corpo exalava.

David tentava manter os olhos semicerrados, como se estivesse morto. O sangue, os cabelos desgrenhados, sua aparência péssima realmente contribuíam para parecer que ele tinha morrido.

O zumbi começou a vir…

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

      • ó promessa de leitor de 13 anos viciado em zumbis em ! vo mostrar teu blog pra geral ja que eu frequento ele a 3 anos e me diverti muitooooooooo aki e vi coisas interessantes aki quero contribuir p/ o mundo gump ficar aki na net por um bom tempo!
        pelo amor de deus posta a parte 5 logo esse conto é foda demais diferente de todos os contos de zumbis que eu ja vi esse retrata bem eles e os sobreviventes e a situaçao!

  1. esse continua amanhã é fogo hein, tem alguma ideia da proxima parte ou você está que nem os leitores, nem sabe o que vai acontecer amanhã?
    (Só mais uma coisinha, eu sou o DANIEL que fez aniversário dia 24)

    • Cara eu realmente não sei o que vai acontecer. Estou tão curioso quanto você. (é estranho um autor dizer isso, né?) Mas algo me diz que a coisa vai piorar.

    • Bem que eu gostaria. O problema nunca esteve tão ruim quanto hoje. Um flanelinha ganha em meia hora mais do que eu ganhei hoje o dia todo com o blog.
      O que acontece é que alguns posts ainda estão (por uma razão que eu desconheço) no index do Google, mas o grosso do blog, mais de 3000 posts, alguns que estavam em primeira posição no buscador simplesmente sumiram. Aconteceu com mais gente, então há uma forte possibilidade de que não tenha sido uma punição. Mas exatamente o que aconteceu eu ainda não sei.

  2. Realmente esses contos do David estão se tornando o ponto alto do meu dia. Pequena observação:

    Nessa passagem:

    “Amarraram seu corpo com a corrente e Jack e Kirby começaram a içá-lo no vazio. Lentamente, foram descendo a corrente, e quando ela finalmente parou de descer, Jack abriu os olhos e viu que estava a menos de meio metro do chão, pendurado como um boneco, de frente para a praça.”

    O certo não seria: “[…] parou de descer, DAVID abriu os olhos e viu que estava a menos de meio metro do chão […]”?

    Rapaz, estou compartilhando cada conto publicado via GReader e Facebook. Sem me permite, quando o meu blog de zumbi ficar pronto (nessa ou na outra semana), vou publicar um artigo decente sobre esse conto.

    Um super abraço,

    tio .faso

    • Renata acho que como um consumidor compulsivo de tudo que se refere a zumbis, eu acabo sendo influenciado por todas essas produções aí. Vou te falar, é muito, (muito mesmo) difícil escapar a alguns clichês do estilo. Agora entendo porque tem tanto filme merda de zumbi. 99% das coisas mais maneiras já foram feitas.

  3. MEU DEUS ISSO TÁ FICANDO MUITO BOM! Cara, é sério como você devia escrever roteiros pra séries e talvez cinema. Tô pensando em começar a escrever contos e postar no Abutre e Costela também.
    Tá de parabéns Philipe. Sou seu fã antiquíssimo, e tô ficando cada dia mais.

  4. Eu ainda naum entendo como é que voce ainda não sabe o que vai acontecer tipo do nada da na tua telha e vc escreveum conto super fóds sem perder o controle da história e ainda consegue chegar no final que tinha escrito primeiro cara vc deve ser superdotado

    • Tipo, eu rolo a bola na direção do gol. Eu sei que no final eu tenho que fazer o gol, mas se vou correr pra frente, pelas laterais, se vou driblar um, dois, dar chapéu, se vou matar no peito, fazer gol de letra, de bicicleta, de voleio, de corner, isso tudo eu não sei. Obviamente que não sabendo exatamente o que vai acontecer, há um risco de eu mandar pra fora, ou ser impedido. Mas é o risco que dá a liga na parada.

  5. Cara tá ótimo teu conto e pelo jeito já vai explicar o porquê do cara ter tascado a mordida no moleque lá no começo do conto. hehehehehe sem spoiler

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