Zumbi – Parte 18

David encostou no muro afim de recuperar suas forças.

De onde ele estava, a cerca de uns cem metros, David viu um zumbi que estava atravessando a rua. Era o zumbi de um negro, que andava pesadamente. Ele era magro, esquálido, seus membros pareciam tão finos e frágeis que David tinha a sensação que aquele ser ia se quebrar. Mas não era a magreza de faquir o que mais lhe chamou a atenção, e sim uma “alegoria” que o zumbi carregava nas costas. No meio das costas do zumbi estava um machado. O zumbi estava com o machado cravado nas costas e devido a isso, andava meio curvado para frente.  David Carlyle imediatamente pensou que se conseguisse alcançar aquele zumbi e retirar o machado das costas dele, a arma poderia ser usada para derrubar a porta. Era uma arma de curto alcance e até aquele momento, David não tivera ainda a necessidade de usar uma arma, mas quem sabe?

David largou o muro para trás e avançou na direção do zumbi. Tudo queimando. Todos os seus músculos ardendo e a dor de cabeça começou a chegar no nível insuportável. A tonteira que ele sentia fazia parecer que o mundo estava dançando e girando loucamente. De vez em quando a vista nublava e David só conseguia enxergar borrões.

Por sorte, o zumbi da machadada andava muito devagar. David apertou o passo o quanto pôde e finalmente chegou perto o suficiente para alcançá-lo. David acompanhou o zumbi negro bem de perto para pensar como faria para tirar o machado dele.

Imaginou como aquele machado havia parado ali. Certamente que em algum momento, quando as primeiras barreiras criadas pelas pessoas sãs caíram, algumas delas tentaram se proteger atacando os mortos. Obviamente que a maioria preferia combates com distância entre elas e os mortos. Dada a virulência do ataque de um morto-vivo, era o mais inteligente a fazer. Mas as hordas aumentavam dramaticamente e David imaginou que no desespero para defender suas casas, as pessoas usaram o que havia por perto. O machado quando bem utilizado é uma arma formidável, mas como ele estava enfiado nas costas do zumbi, aquilo provavelmente indicava que a pessoa tentou surpreender a criatura. Talvez um pai, que ao chegar em casa se deparou com o morto comendo um de seus filhos.  Ou ainda, um grupo de amigos, que atacados por uma horda, ao perderem um de seus membros para a multidão tentaram acertar as criaturas, e libertar o amigo ferido. Como o zumbi sempre ataca de frente, era certo que aquela machadada fora dada enquanto ele atacava outra pessoa. Do jeito que o machado se encontrava fincado nas costas do morto-vivo a explicação mais provável é que ao atacar o zumbi com cara de faquir, o sujeito não se precaveu e acabou sendo atacado por outros zumbis, e o machado ficou enterrado naquela criatura decrépita, aquela carcaça tenebrosamente animada, tornando-se parte dela.

David olhou em volta e tudo que viu eram mortos parados ou cambaleando sem rumo pelas ruas da cidade.

O zumbi da machadada finalmente parou. David viu ali a sua oportunidade perfeita. Colocando a perna bem na frente do morto, ele empurrou o zumbi com toda sua força. O sujeito magro caiu de cara no chão com imensa facilidade, expondo o machado para o alto. Ele começou a gemer e espernear no chão. Tentava se levantar. David meteu o pé nas costas dele e agarrou o machado com as duas mãos. Tentou puxar mas a arma estava fortemente agarrada na pele pútrida do morto. David reuniu as forças e tentou mais uma vez. E então o machado se soltou com um som úmido. Estava repleto de larvas e bichos que haviam se ploriferado na ferida. O buraco da machadada nas costas do zumbi era enorme. David segurou o mesmo e afastou-se. O morto ficou no chão, se debatendo, tentando levantar daquele jeito desconjuntado.

David virou as costas e saiu andando com o machado. Ao redor deles, nenhum zumbi parecia se importar com a cena. Todos eles andavam com o olhar perdido e vazio. O rosto sem expressão, à espera da derradeira morte que nunca veio.

David espantou-se de ver como o machado era pesado. Mas depois de alguns minutos compreendeu que não era a arma que tinha um peso fora do comum, e sim ele que estava fraco demais, tão fraco que já mal conseguia andar. Ele estava longe, em meio aos prédios queimados e abandonados da cidade grande. As forças diminuíam rapidamente. David parava para descansar a cada dois passos. O enjôo era uma constante. Seu peito ardia. Começou a se perguntar se conseguiria realmente retornar ao prédio.

Alice estava atrás da porta, com medo. Ouvia os passos sem saber o que esperar. Ela viu pela greta da dobradiça uma pessoa magra, cheia de tatuagens.  O sujeito era um homem e estava sem camisa. Usava apenas uma bermuda com aparência militar, camuflada, e botas de escalar.

O sujeito parecia nervoso. Alice ficou no mesmo lugar prendendo a respiração. Ele veio direto na sala em que ela estava.

Passou por ela sem notar que Alice estava atrás da porta. E então ela pôde dar uma boa olhada nele. Parecia ter uns vinte e oito, talvez trinta anos. Era bem magro. E tinha muitas tatuagens.

Começou a mexer nas gavetas da sala. O sujeito parecia meio maluco. Usava  um óculos de armação preta grande, lentes fundo de garrafa. Ele tinha uma barbinha rala que aumentava o tamanho do queixo. Os cabelos eram poucos, e todos para cima. A testa avançava com entradas pronunciadas do início da calvície dos trinta anos.

Ele ficou mexendo nas gavetas e quando falou sozinho, sua voz era estranhamente frágil. Meio engraçada.

-Porra, tem que estar aqui em algum lugar. Que merda cara! Cadê? Cadê, porra?

Alice ficou olhando para ele. Teve vontade de sair de trás da porta e pedir socorro, mas os lanhos em suas costas ainda ardiam, e eles lhe lembravam a dura lição que ela aprendera: Não confie em humanos. Principalmente nos armados.

E o sujeito magro que futucava nas gavetas tinha justamente uma arma enfiada na bermuda. Alice viu a coronha surgindo nas costas do cara.

Subitamente Alice se dá conta de que ela não está sozinha com o desconhecido naquela sala.

Bem na frente dela, parada, com a língua para fora estava um pequeno cão. Um buldogue francês, gordinho com aquele sorriso debilóide que só os buldogues franceses tem. As orelhas em pé. O animal olhava com os olhos esbugalhados direto para ela. Sem fazer nenhum som. Ele era todo branco e tinha apenas uma pequena mancha preta na cabeça.

Alice temeu que o animal latisse, mas o pequeno cão apenas olhava para ela com uma expressão amistosa. Não emitia nenhum som. Mas subitamente o temperamento do cachorro começou a mudar e ela começou a rosnar baixinho.

Alice colocou o dedo na boca: – Shhhhhh!

Aquilo teve efeito contrário ao que ela esperava. O cão tomou a posição de ataque e começou a latir olhando pra ela.

O sujeito magrelo deu um pulo pra trás. E sacou a arma.

Ele ficou em silêncio, olhando para ela. Alice levantou as mãos, na esperança de não ser baleada ali mesmo.

O cachorro latia freneticamente ao lado do cara armado.

-Calma, calma, moço!

O sujeito estava impávido. Segurava a arma com firmeza. Ele sabia segurar uma arma. Alice notou que o cara fazia a base correta. Segurava a arma com uma mão e a outra firmava o pulso, apoiando-se por baixo da coronha. Os joelhos levemente flexionados. Ele devia ter feito curso de tiro. Finalmente o sujeito tatuado e magro sorriu enigmaticamente e quebrou o silêncio na sala.

-Oi. Como vai você? – Ele disse, de forma mecânica.

-Calma, moço. Baixa isso. Estou desramada.

-Quem é você? O que está fazendo aqui? Como você entrou aqui? E que roupa estranha é essa?- Ele perguntou de uma só vez. O cão continuava a latir esganiçadamente. Então o cara virou-se para o animal e berrou:

-Cala a boca, Lolita!

O pequeno cão estancou ao lado dele, em silêncio.

O sujeito não baixou a arma.

Alice olhou nos olhos do homem tatuado. Ele tinha um olhar incomum.

-Eu entrei pela escada de emergência?

-Impossível. Ela é bloqueada com a grade.  – Ele disse.

-Não essa do fim do corredor, mas uma outra, que tem chumbada na parede perto da escada de emergência.

-Escada? Na parede?

-Isso mesmo. Parece uma rota de fuga ou algo assim, Vai dar dentro do quartinho de limpeza, lá em baixo.

-Poxa vida… Esse prédio é cheio dessas coisas. Achei que tinha isolado totalmente o edifício.Tem mais alguém aqui?

-Não… – Alice hesitou. Ela sabia qual seria a próxima pergunta do magrelo tatuado.

-Está sozinha ou tem mais alguém aqui?

-Sozinha.

-Hummm. Sai daí. Vem mais pra cá. – Ele disse com a arma na mão. O cão voltou a rosnar. Ele olhou para o animal:

-Shhhh! Quieta! – E o cão tornou a se calar.

Alice notou pelo sotaque dele que ele era estrangeiro. Parecia francês ou espanhol. Ele não perguntou, mas ela achou melhor se apresentar.

-Oi, meu nome é Alice.

-Eu sou o Paul. Esta é a Lolita.  Fala oi pra moça, Lolita.  – O cão ficou parado com a expressão de sorriso ingóbil. Aquilo irritou Paul. – Fala oi, porra!

-Pode deixar. Pode deixar, Paul. – Alice apressou-se em dizer.

-Ela é meio mal educada mesmo, viu? Não esquenta não.- Ele disse, apontando a arma para o cão. Imediatamente o animal saiu correndo e escondeu-se debaixo da mesa.

Alice riu. O animal parecia saber que o dono não batia muito bem do pino.

– Paul Cezar. – Ele disse, com o inglês meio macarrônico.  Guardou a arma na cintura e estendeu a mão osssuda para ela.

-Prazer.

-Como vai você?- Ele repetiu.

-Vou bem. Quer dizer, vou mal. Estou acampada aqui tem três dias. Essas coisas me cercaram. Consegui me abrigar aqui, mas a porta lá do final do corredor estava trancada. Não dava pra sair desse andar nem voltar pra rua. Estou morrendo de fome e tenho bebido a água da torneira do banheirinho ali da sala do lado pra me hidratar.

-Nossa. Essa água tem gosto de ferrugem.

-Tem mesmo.

-É que o encanamento aqui é antigo. De ferro. Sabe como é.

-Pois é. Mas o que você estava procurando, Paul?

-Eu estava procurando um ferro de solda que vi por aqui em algum lugar. Você viu?

-Não, não. Eu já vasculhei tudo por aqui em busca de comida. Não tem ferro de solta nesse andar. – Ela disse.

-Droga. Maldição. Deve estar em algum outro lugar então. Tá uma bagunça isso aqui.

-E você? Está com mais alguém? Tem outros sobreviventes aqui com você? – Ela perguntou.

-Não. Só a Lolita.

-Ahm. – Alice concordou, olhando o cão branco, que estava mastigando a perna da mesa. -Mas como você sobrevive aqui?

-Eu… Eu dou meu jeito.  – Ele disse, olhando pela janela. – …Agora entendi porque essas merdas cercaram o prédio. Você trouxe eles pra cá.

-Desculpe.

-Tudo bem. Já passei por isso outras vezes. Eles ficam, por aí uma semana, e depois dão o fora. São meio insistentes.

-É, eu sei. Estou tentando escapar deles tem vários dias.

-Você teve sorte. – Ele disse. E completou: – Quer comer?

-Sim, por favor! Estou faminta.

-Bom, estou acampado lá na cobertura. É uma subidinha meio ingrata, tá?

-Tá… Espere um minuto? Vou no banheiro rapidinho. – Alice falou já fechando a porta. Não esperou que Paul dissesse qualquer coisa.

Longe dali, lá em baixo, a noite caía sobre a cidade. O aspecto assustador e desolado do dia dava lugar a um visual macabro e soturno, com os prédios fracamente iluminados pela luz da lua, projetando suas sombras escuras e opressivas pelas calçadas repletas de ossos, detritos e sangue seco.

No meio da escuridão, David Carlyle  arrastava o machado. Subitamente, uma pequena confusão chamou sua atenção. Havia uma horda de zumbis que corria  pela rua, perseguindo um sujeito.

David levantou-se do estado de penúria, e tentou acompanhar o grupo. Eles eram mais rápidos. David ficou para trás.

O sujeito passou correndo esbaforido, desviando dos zumbis que surgiam de todos os cantos tentando agarrá-lo. Era bastante ágil.

David forçava seus músculos para tentar acompanhar. Certamente os mortos iriam pegá-lo e com sorte, sobraria algum pedaço da carne daquele infeliz para David. O sujeito tinha  uma escopeta na mão e uma mochila nas costas. Ele correu até a entrada de um mercadinho. Os zumbis vinham logo atrás.

David percebeu o que está se passando. Ele correu na direção do mercadinho. Os músculos queimando. A tremedeira quase não permitia que ele se mantivesse de pé. O machado parecia pesar duas toneladas.

Ao invés de seguir direto para a entrada do mercadinho, David entrou no beco lateral. Correu pela escuridão em direção ao pátio dos fundos. Ali ele se escondeu atrás de um enorme latão de lixo.

David escuta os estalos da escopeta disparando. Subitamente a porta mal iluminada pela fraca luz da lua se abre e o sujeito cai. Ele atira várias vezes lá pra dentro. Dispara até a arma estalar, sem balas.

David escutou o eco dos gemidos dos mortos dentro do mercadinho.

David viu o cara, que tinha cabelos loiros encaracolados e barba tirar alguma coisa que pareceu um charuto de dentro do casaco. Em seguida, ele acendeu alguma coisa.

“Porra, tá de sacanagem! O cara vai fumar?” – David vê o sujeito acendendo a coisa. Os zumbis quase o alcançando.

O cara jogou aquilo no interior do mercadinho e meteu o pé na porta, trancando-a. Na paulada, a porta decepou os dedos de um zumbi. Os mortos começaram a bater e forçar a porta. O sujeito usava as costas para forçar a porta a não abrir. Os mortos começaram a desferir pancadas na porta.

-Vai, vai, vai! – O sujeito de barba começou a gritar sozinho do outro lado do pátio. David estava abaixado, escondido perto do latão.

E então aconteceu a explosão. Do outro lado da rua, uma bola de fogo enorme emergiu pela vitrine estourada do mercadinho e pedaços de zumbis voaram para todos os lados.

Na explosão, a porta dos fundos  foi ejetada sobre o cara e ele voou uns dois metros pra trás. A escopeta quicou no chão. E se deu um súbito silêncio. David saiu de trás do latão. O cara louro dos cabelos cacheados estava caído no chão. Ele tinha um belo cachecol ao redor do pescoço, e vestia uma roupa que parecia ser de alpinista. Um casaco grosso, laranja e calças de cor cáqui.

David ergueu o machado e desferiu o golpe sem piedade. Ele sabia que precisava ser rápido. Machadada após machadada, David foi abrindo buracos no casaco, o sangue emergindo em profusão formou uma poça ao redor do corpo. David abaixava-se e mordia com violência as tripas. Bebe o sangue do morto. Sentiu o corpo reagir de imediato. Quanto mais tempo sem a carne, maior o prazer ao ingeri-la.

David comeu com fúria, mastigando as entranhas no corpo ainda quente.

Seus sentidos se aguçaram rapidamente. A tremedeira passou como que por mágica. Ele já podia ouvir ao longe, o som de outros mortos vindo. David Carlyle sabia que a explosão os atrairia.

O cheiro do sangue fresco se espalhou rápido. Os mortos surgiriam em uma gigantesca legião em menos de um minuto.

David levantou-se,  pegou o machado que agora parecia incrivelmente leve. Levantou sobre a cabeça e começou a esquartejar o corpo do “alpinista” como David preferiu pensar naquele infeliz. Enquanto atingia o corpo com as machadadas, David mentalmente pedia perdão por fazer aquilo. Tirou a mochila das costas do sujeito. Espalhou as coisas dela pelo chão. Eram caixas de remédio. David percebeu que ele certamente era um batedor dos sobreviventes, que fez uma incursão mal sucedida para buscar medicamentos.

Os mortos estavam cada vez mais perto. Revigorado, o zumbi já escutava o som deles vindo pelo interior fumegante do mercadinho.

David pegou pedaços de carne do morto e jogou na mochila. Cortou um pedaço da coxa do sujeito com mais machadadas e arrancou grandes nacos de músculo, e o fígado, que jogou na mochila. Os mortos estavam vindo. Não havia mais tempo.

David colocou a mochila do morto nas costas. Pegou o machado e correu para o beco escuro.  Ele sabia que se os mortos sentissem o cheiro da carne fresca na mochila, correriam para cima dele. David fugiu, deixando para trás a montanha de zumbis que pulava sobre o corpo.

Paul, Lolita a e Alice estavam subindo as escadas.

-Pra que o ferro de solda?

-É que eu gosto de eletrônica. Não entendo muito, mas sei alguma coisa. Tenho feito alguns hacks no prédio.

-Hacks?

-Sim. Alterei algumas coisas. Eu vou te mostrara quando chegarmos lá. Só que meu ferro de solda queimou e não esquenta mais. Preciso achar outro para retomar o trabalho.

Dez minutos depois, os três chegaram ao último andar do edifício.

-É aqui?

-Não, é por ali. – Disse Paul, apontando com a lanterna a placa que dizia “Heliporto”.

-Você está acampado no heliporto?

-Não exatamente. Estou acampado ao lado da cisterna. É que em dias de tempo bom, eu vou lá pra cima. Se chove, eu trago tudo aqui pra baixo e fico na sala de reuniões.

Ao chegar no topo do prédio, Alice se deu conta da quantidade enorme de fios e cabos de energia espalhados desordenadamente pelo chão.

-O que é isso?

-Bem… Como eu disse, eu dei umas mexidas aqui no prédio. Veja ali em cima. Tá vendo aquelas placas? São painéis fotovoltaicos. Eles recolhem energia do sol e transformam em energia. O outro lado do prédio, que pega sol a maior parte do dia, é recoberto totalmente com eles.

-Nossa.

-Pois é. O prédio era desses ecologicamente corretos, sabe? Então ele capta também a água da chuva. Na parte interna tem uma sala enorme lotada de grandes baterias. O prédio era usado por duas empresas. Uma de quadrinhos, que era onde eu trabalhava e a outra era uma empresa de computação. Os servidores não podiam ficar sem energia então eles instalaram o sistema redundante que supria a necessidade elétrica de todo o prédio.

-Que legal, Paul.

-Então o que eu fiz foi mexer nos circuitos e separar algumas baterias. Levei um tempão para conseguir, mas olha só que legal… – Paul acionou uma chave elétrica perto de onde estava a cama king size.

Uma série de trinta e oito spots se acenderam numa poderosa luz branca, que subia do alto do prédio para o céu, formando uma espécie de cone de luz que se perdia no infinito.

-Caramba!

-Sabe, estou montando isso aqui para ser resgatado. Sei que os aviões irão passar, e se eles passarem durante a noite eu deixo isso aceso para que eles saibam que tem gente aqui.

-Ah… – Alice assentiu com a cabeça. Ela sabia que Paul era muito jovem, um pouco maluquinho e que as esperanças dele ser resgatado eram fantasias inocentes de quem não viu a barbárie em que o mundo havia se tornado.

– E aqueles freezers ali? – Alice perguntou, indo na direção deles.

Paul saltou na frente dela.

-Ali é onde eu estoco a comida, ué.

-Comida?

-Sim. Antes dessa merda toda começar, nos primeiros dias, ocorreram os saques. Eu não sou bobo nem nada, né?  Achei uma van e invadi um açougue. Roubei toda a carne do açougue. Tem carne congelada aí pra vários meses.O freezer amarelo não está muito bom. O motor dele tem dado umas rateadas, e a carne ficou meio verde, mas ainda dá pra comer. E ali, ó. Ali está o meu fogão. É um fogão elétrico que tinha na copa da diretoria. Eu trouxe pra cá.

E aqui… Tchanããã! É minha televisão de cinquenta polegadas e meu videogame!

-Videogame?

-Sim, eu não vivo sem isso, ué. A Tv tirei da sala de reunião. Não passa nada, então só serve para jogar joguinho. A merda é que eu já zerei todos, então tenho jogado na dificuldade máxima. Minha meta é zerar tudo no hard até o fim da semana que vem.

-Mas não é muito solitário, Paul?

-Sabe, eu me acostumei com a solidão. Além disso, eu tenho a Lolita. Né Lolita? Porra, Lolita! Não come o fio, caralho! Sai. Saaai! Sai sua pilantra!  – Ele gritou, e o cão parou de morder o fio e correu para debaixo da cama.

Paul sentou-se na beira da cama. Olhou a cidade lá fora. Alice sentiu o vento no rosto.

-Nem parece que o mundo acabou, né?

-É… – Respondeu Alice. Ela pensava em David. Onde ele estaria na cidade escura?

-Como você conseguiu chegar aqui? Deve ter sido foda, né?

Alice pensou se contava ou não a verdade sobre David para o sujeito tatuado. Resolveu omitir certos detalhes.

-Eu não estava sozinha.

-Não?

-Não. Eu estava com um… Amigo.

-E ele?

-Ele… foi mordido. Então… Resolveu partir.

-Que merda, cara.- Disse Paul, olhando pra ela.

-É… Que merda. – Alice concordou e tornou a olhar para o céu. A lua brilhava entre as estrelas. Era uma noite sem lua.

Houve um silêncio breve. E Paul tentou animar a moça.

-Mas sabe de uma coisa? Minha vida até que melhorou com essa merda aí fora.

-Melhorou? Tá brincando, né?

-Não… Não. Minha vida melhorou mesmo depois de que o mundo acabou. Sabe, eu era colorista… Ganhava mal pra caramba. Eu morava num muquifo apertado e quente pra caralho… Agora veja só. Eu moro no alto de um dos prédios mais altos da cidade com vista de 360 graus!  Jogo videogame o dia todo… E não tenho mais patrão, nem prazos. Quando estou com saco eu fico aqui desenhando, escuto musica… Tomo um banho…

-Banho? Você disse banho? – Alice abriu um sorriso.

-Isso mesmo, moça. Banho… E o melhor, é quente!

-Ah, tá brincando! – Ela disse, sorrindo.

-Sabia que você tem um sorriso lindo?

-Obrigada. – Ela agradeceu sem graça. O garoto parecia gente boa.

-Mas então quer dizer que a Lolita é sua única família?

-Agora é, né? – Disse ele brincando de agarrar a boca do cachorro que tentava lamber a cara dele.

Houve um minuto de silêncio. Alice perguntou:

-Mas e as pessoas que trabalhavam aqui com você?

-Quando a merda começou, eu estava aqui com a Lolita. Eu sempre ficava depois do expediente, porque o ar condicionado daqui era bom, e o meu quarto e sala onde eu morava era muito quente. Além disso, eu ganhava uma graninha extra. Então eu estava aqui na madrugada em que a confusão se espalhou.

-Sozinho no prédio?

-Não, eu estava com o Ney, o cara da xerox. O Ney era um brother meu lá do Brasil. A gente veio junto.

-E cadê ele?

-Ah, é uma longa história.

-Acho que nós temos tempo. – Alice riu.

Paul empurrou o cão para longe da cama.

-Sai Lolita. Esse lençol é de algodão egípcio, sabia?

-Não quer falar sobre o Ney?

-Eu falo. Tudo bem. Curiosa você, hein meu? Bom, o Ney estava aqui comigo e no prédio lá em baixo estavam os seguranças e os caras do suporte da empresa de computação. Era pouca gente. Umas vinte no total. Quando começou a confusão, a maioria foi embora, porque tinham medo dos saques. As pessoas nem imaginavam a merda que ia dar. No início, todo mundo só se preocupava com as coisas mais banais, como roubarem os carros delas, invadirem as casas, comprar comida para estocar ou proteger as crianças. Foi embora quase todo mundo.

O Rony, que era o vigia perguntou se eu e o Ney íamos embora, mas nós resolvemos ficar. Então o Rony trancou o prédio. E nós ficamos alguns dias aqui. A coisa foi só piorando e quando os canais saíram do ar, só nos restou aquele radio ali, ó. Ele é de ondas curtas, e a gente usava para saber notícias, mas gradualmente as estações acabaram. A luz falhou logo no dia seguinte e não voltou mais. Eu e o Ney começamos a mexer na aparelhagem do prédio para desviar a energia das salas aqui pra cima. Ele que me ajudou a trazer os freezeres, a Tv e o fogão…

No início a gente achou que ia levar um mês, mas então começamos a ver que a coisa estava ficando cada vez mais séria. Os helicópteros militares jogaram bombas, tanques andavam atirando pelas ruas. E tinha cada vez mais gente morta andando lá em baixo… – Enquanto Paul contava, Alice ouvia em silêncio. Ela lembrava da madrugada em que a casa tinha sido invadida. A fuga, a confusão, as pessoas gritando na escuridão…

– E como vocês aguentaram tanto tempo aqui?

-Ah, essa foi a parte fácil. Aqui é bem melhor que lá em baixo, né? Mas teve uns momentos bem ruins. Muitas pessoas tentaram entrar no prédio, buscando refúgio. Mas nós não deixamos elas entrarem.

-Que isso, cara!

-Não, você não faz ideia no que as pessoas se transformaram, Alice. Agora é cada um por si. Nós tínhamos medo que as pessoas entrassem aqui e nos expulsassem. Trazer gente de fora era um risco porque elas podiam estar contaminadas. O Ney era chato pra caramba com isso. Se ele estivesse aqui ele teria te matado lá mesmo, no quinto andar.

-Mas e o tal Ney? O que aconteceu?

– Porra… É triste pra caralho. A gente descobriu que tinha uma saída pela garagem. Então de vez em quando nós fazíamos umas saídas rápidas, pra pegar comida, e coisas úteis, saca?

-Lençol de algodão egípcio, né?

-Isso. Essas coisas.Numa dessas incursões lá fora, eu e o Ney ajudamos umas moças que estavam presas num elevador de uma loja de departamentos. Coitadas. O Ney não queria, mas eu insisti para trazermos elas com a gente. Então onde estavam dois acabou ficando quatro. Só que uma delas era muito gata. E a outra era meio assim, mais ou menos, sabe?

-E… – Falou Alice, curiosa para ouvir a história.

-E aí, nós ficamos aqui uns quatro dias, só que elas eram meio frescas, sabe?

-Frescas?

-É… Tipo, nada podia. Cheias de vergonha e tal.

-Vergonha?

-É, tipo… A gente queria que elas dormissem peladas aqui com a gente, mas elas não ficavam peladas nem pelo cacete.

-… – Alice estava espantada vendo Paul explicar com naturalidade sua ideologia de vida. Ele continuou:

-Então, depois de muito insistir, o Ney perdeu a cabeça. Ele agarrou a mais gatinha e tentou fazer sexo à força com ela.

-E você?

-Eu… Eu estava… Eu estava tomando banho. Sei lá. Eu só corri pra cá quando ouvi os tiros.

-Tiros?

-Pois é. A outra moça, uma tal de Caroline, ela achou uma das armas que pegamos na sala da segurança. Ela meteu tiro do Ney. Só que acabou matando também a Samantha.

Eu me assustei e quando ela apontou a arma pra mim, não pensei duas vezes e matei a Caroline.

-Nossa que tragédia. Coitadas.

-Coitadas? Coitado do Ney, porra! O cara tem suas necessidades, pô. A mulher quer vir pra cá, quer ter segurança, banho quente, comida boa, vista sensacional, e não dar nada em troca? Vai se foder, né?

Alice ficou em silêncio. Ela sabia que aquilo era um recado.

-Eu posso tomar um banho então? – Ela perguntou.

Pode, claro. O chuveiro fica no andar de baixo, no banheiro da diretoria. Vem comigo. Tem toalha e roupão lá.Vem comigo. É por aqui. Vem, Lolita.

David se esgueirava pelos cantos escuros, sempre tentado observar nos jornais que voavam pelas ruas qual a direção do vento. Ele temia que os mortos sentissem o cheiro da carne na mochila. Sua força voltava rapidamente.

David encontrou uma loja de produtos baratos “made in china”. Ao loado dela, havia uma espécie de delicatessen, toda destruída. David se aproximou.Procurou comida no meio dos entulhos e detritos. Achou carne enlatada, vulgo SPAM.

David pegou algumas latas que encontrou pelo chão e colocou na mochila. Então ele viu que no fim da rua tinham uns três zumbis que vinham rápido na direção dele.

“Merda! Eles sentiram o cheiro!” – Pensou.

David colocou a mochila nas costas. Pensou em correr, mas sabia que se corresse, os zumbis iriam disparara a gritar e isso atrairia uma turba cada vez maior. David então cambaleou como se fosse um zumbi para dentro da delicatessen. E esperou.

O primeiro zumbi a chegar veio farejando como um cão. David subiu no balcão, Levantou alto o machado e desferiu um golpe só, que partiu o crânio do zumbi em duas partes. O morto caiu no chão no ato. David ergueu o machado, O segundo zumbi se aproximava, acompanhado de um gordão fedorento. Era um zumbi mulher com os cabelos todos para o alto, como se tivesse levado um susto.  David acertou-lhe um golpe e a cabeça de cabeços espetados caiu no chão. O corpo sem cabeça ainda deu dois passos antes de tombar sobre o corpo do primeiro zumbi que teve o rosto dividido em dois.

Mas antes que David pudesse se preparar para uma nova machadada, gordão pulou sobre ele, e o derrubou. Era uma massa pesada de carne podre e banha. David tentou lutar, mas o zumbi era forte demais. Estava cheirando David em busca da carne. David rolou no chão da loja tentando manter a mochila contra o chão. Ao serem pressionados, os órgãos liberaram grande quantidade de sangue. O sangue começou a escorrer da mochila e aquilo deixou o gordão num frenesi maior ainda.

David tateou com a mão em busca de alguma coisa. Sentiu a boca gelada de uma garrafa. Ele agarrou a carraga e acertou uma garrafada na cara do gordão, que caiu de lado, embebido em champanhe. David aproveitou para saltar do chão. O gordão estava se levantando, mas como era muito gordo, tinha dificuldade. David agarrou o machado do chão e acertou o gordão bem no meio da testa, abrindo um talho de onde escorreu um sangue escuro. O gordão caiu de braços abertos no chão da loja.

David foi até a porta e viu que lá do final da rua, vinham mais e mais zumbis na direção da loja.

“Maldição! O sangue está atraindo. ”

David correu para os fundos da loja e meteu o machado na porta. Na segunda machadada a porta cedeu. David correu para os fundos e saltou uma cerca de madeira. Correu pelo estacionamento de um comércio e chegou na outra rua. Ele sabia que não poderia perder tempo, ou os mortos iriam alcançá-lo.

“Preciso dar o fora daqui e chegar no prédio logo.” – Pensou.

David correu pelas ruas, tentando ser o mais ágil e discreto possível.

-Então aqui é o nosso banheiro master… – Disse Paul, orgulhoso apresentando o banheiro lindíssimo todo em mármore branco e verde.

-É lindo mesmo. – Respondeu Alice olhando em volta.

-O chuveiro é aqui. E este mármore, dizem que vem lá da África, sabia? Ah, aqui está o roupão, e as toalhas, tá?

-Tudo bem, obrigado. – Ela disse, mas o sujeito não saiu do banheiro. Isso forçou Alice a repetir.

-Ok, obrigado. Agora pode ir.

-… – Ele não disse nada. Ficou olhando para ela com um olhar estranho. Então ele disse:

– Por uma questão de segurança, aqui não tomamos banho sozinhos. Eu tenho que ficar aqui. – Disse, sacando a arma das costas da bermuda.

Alice começou a sentir medo. Pensou novamente em David. Havia muitas horas que ele tinha saído. Será que conseguiu ajuda? Será que ainda estava vivo? Será que voltaria?

-Vai, Alice. Pode tirar a roupa! – Disse Paul, olhando pra ela.

Alice olhou a arma e viu que o sujeito esquálido estava falando sério. Lembrou-se dos malucos na cabana. Da violência que sofrera.

Então ela começou a tirar a roupa. Tirou o vestido de bolinhas da fazendeira ruiva. Tirou as botas e ficou nua em pelo, na frente do sujeito. Ela notou o volume na bermuda dele. Paul estava tendo uma ereção só de olhar pra ela.

-Nossa, como você é… Gostosa…  – Ele disse. – Posso tomar banho com você?

-Não.

-Ah, qual é!? Um banhozinho inocente, pô.

-Ei, garoto, olha bem pra minha cara. Vê se eu estou brincando. A resposta é : Não!  – Alice estava séria.

Paul parecia desolado.

-Porra, mais uma fresca. – Ele disse checando acintosamente as balas na arma. Alice tremeu. Precisava ganhar tempo.

-Olha Paul, você parece um cara legal. Mas não sabe chegar em mulher. Vê se é assim que se chega? … Mal me conheceu quer tomar banho comigo? Qual é? E a conquista? Tá pensando que eu sou o que? Uma piranha de estrada?

Paul ficou olhando pra ela em silêncio por alguns instantes. Ajeitou os grossos óculos com o dedo.

-Foi mal. – Ele disse.

Alice não disse nada. Apenas abriu o chuveiro e começou a tomar banho. Havia sabonete e shampoo sobre a mureta da parede.

Paul assistiu Alice tomando banho por aluns minutos e saiu do banheiro.

Alice viu que estava sozinha e chorou baixinho sob a água morna. Onde estaria David?

Minutos depois, quando Alice saiu do banho, surpreendeu-se ao chegar na cobertura e ver uma mesa coberta com um lençol e sobre ele, um jantar à luz de velas. Paul estava com camisa xadrez marrom, bebendo um vinho tinto.

-Nossa!

-Bem, vamos ter um jantar romântico. – Ele disse.  – Vou preparar para você minha especialidade…

-E o que é? -Alice perguntou curiosa, enquanto ajeitava a toalha na cabeça. Ela vestia o roupão branco que Paul havia dado a ela, já que o vestido de bolinhas estava todo sujo suado e rasgado.

-Bife. – Ele disse com um sorriso no rosto.

Alice olhou para a bancada ao lado do fogão elétrico. Ali estava um belo pedaço de carne, que Paul cortou com cuidado, retirando camadas de gordura amarela.

Ele pegou num armário um pote laranja de tampa amarela e começou a derramar o pó marrom sobre a carne.

Alice assistia sentada à mesa com a taça de vinho na mão.

-Que isso?

-Tempero.

-Você não está colocando muito?

-Nada… É só pra dar um sabor especial. É o segredo do meu sucesso, né Lolita?- Ele disse. Em seguida, pegou uma garrafa enorme de óleo e derramou na frigideira que estava sobre o fogão. A gordura estalou quando ele colocou os grossos bifes na panela.

O cheiro bom da fritura inundou a cobertura. Ventava pouco e a lua acentuava o clima romântico do jantar.

Alice foi com a taça de vinho na mão até a beirada. Olhou lá para baixo. Viu a multidão de zumbis andando como formiguinhas, e os prédios escuros ao redor deles. Alice ficou pensando em David. Onde ele estaria? Talvez estivesse lá em baixo. Será que voltaria? Começou a pensar em alternativas para caso David não voltasse. Ela teria de ficar ali com o sujeito magrelo. Era o único jeito. Certamente ele iria querer usufruir do corpo dela. Mas não haveria outra alternativa… Sem arma, a mercê do destino, ela precisaria sobreviver, e estava disposta a fazer o que quer que fosse preciso para isso. Até se tornar mulher daquele desenhista  estranho.

-O jantar está servido! – Ele disse.

Alice virou-se e viu uma caçarola com dois enormes e grossos bifes dentro.

Ela foi até a cadeira e sentou-se. Paul deu a volta na mesa e sentou-se do outro lado.

-Mais vinho?

-Sim, por favor. – Ela disse. Estava disposta a tomar um pileque, na tentativa de dissuadir o jovem de suas intenções sexuais.

Paul encheu a taça da moça com o vinho.

Ele cortou um belo pedaço de carne sangrenta, passou no creme amarelado no canto do prato e enfiou na boca, mastigando com satisfação.

-hummmm. Delícia – Falou de boca cheia.

Alice partiu a carne. Estava excessivamente mal passada para o padrão dela. Levou um pedaço pequeno à boca. Havia tanto tempero que ela mal sentia o gosto. Ela mastigou duas vezes e engoliu. O sabor era desagradável. Amargo demais.

-Que tal? Ele perguntou tomando um gole de vinho.

-Bom… – Alice disse tentando disfarçar no nojo. Certamente a carne havia apodrecido e talvez por isso, ele estivesse colocando tanto tempero tentando disfarçar.

Após alguns minutos, Paul notou o comportamento de Alice.

-Não gostou da carne, né? – Ele perguntou chateado.

-É que… Bem… Eu não como carne, sabe? Sou vegetariana…

-Ah, pode falar. Eu sei que não sou um bom cozinheiro.

Alice tentou mudar de assunto.

-Então quer dizer que você conseguiu criar esta ilha de diversão com energia solar! Você é bem esperto hein Paul?

-É… Mas quem era fera mesmo era o Ney. O Ney tinha feito um curso de eletrônica, e lá no Brasil ele consertava eletrodomésticos. Ele era meu vizinho em São Paulo… – Paul contava animado sobre a vida dele na cidade de São Paulo. Alice não prestava a mínima atenção. Pensava apenas em David. Tomava grandes quantidades de vinho.

Paul falava animadamente sobre vários assuntos, e Alice apenas concordava e tomava mais e mais vinho.

Já havia três garrafas vazias sobre a mesa, quando Paul notou a estratégia da morena.

Paul levantou-se foi até onde Alice estava. Ela agarrou a taça e bebeu sofregamente. Paul abaixou-se e beijou o pescoço dela.

-Ai, para, Paul. Espera! – Ela disse meio zonza.

-Você é um tesão. – Ele disse, tentando enfiar a mão por dentro do roupão dela.

-Ai, me solta! Ung. – Alice tentava evitar, mas Paul estava sóbrio.

Alice tentou agarrar a arma na cintura dele, mas Paul percebeu e  foi mais rápido. Empurrou a moça, que tombou da cadeira no chão.

-Que porra é essa? Quer pegar a arma é?

Alice não disse nada. Tentou levantar.

Paul apontou a arma pra ela. Alice sentiu que ele ia atirar.

-Não! Por favor!  – Ela disse, abrindo o roupão.

Ela agora estava nua em pelo na frente dele. Ela tentou sorrir. Mas Paul parecia bravo com a tentativa de pegar a arma dele.

-Deita na cama, vadia! – Ele apontou a cama com a arma. Era uma cama king size, colocada de frente para a enorme televisão que estava apoiada num caixote de madeira. Os lençóis eram branquíssimos.

Alice teve medo. Não obedeceu.

-Deita lá, porra! – Ele gritou.

Mas Alice não reagiu. Estava com medo se ser violentada novamente.

Paul mostrou que não estava brincando. Apontou a arma para a cama e deu um tiro.

Alice deu um pulo de susto.

Jogou o roupão no chão e foi até a cama.

-Deita aí.- Ele disse.

Ela obedeceu.

David vinha correndo na direção do prédio. Ele sabia que seria problemático passar pela multidão.

Parou perto de uma loja e olhou ao redor. Viu que no alto do prédio vários fachos de luz iluminavam o céu.

“Mas que porra é essa?” – Ele se perguntou. Aquele era o único ponto de luz artificial que ele via em muitos dias.

Subitamente David Carlyle ouviu o eco de um tiro no ultimo andar.

“Puta merda! Alice!” – Ele pensou.

David viu a multidão de zumbis ao redor do prédio. Tinha que encontrar uma forma de chegar lá sem que os mortos sentissem o cheiro do sangue e da carne.

David entrou na loja. Correu até o caixa. Encontrou uma sacola grande. Ele jogou a mochila na sacola e amarrou com força o plastico ao redor da mochila.

Em seguida pegou outro e amarrou em volta, protegendo ainda mais o pacote precisos de carne humana fresca.

Saiu para a rua disposto a testar a funcionalidade dos sacos. David andou até um zumbi. Passou lentamente perto do zumbi pronto para correr se fosse necessário. Mas op zumbi nem se moveu. Continuou parado.

“Yes! Funcionou!” – Ele pensou.

David correu na direção do prédio. Passou correndo através da multidão de mortos que gemiam andando de um lado para outro sob o prédio da editora.

David saltou a barricada de carros.

Correu com a mochila envolta nos sacos pela rua estreita e chegou até o pequeno patio interno. Ali estava um zumbi parado. Era uma criança de uns treze anos, zumbizada, Andava gemendo e tremendo de um lado a outro. David ficou com pena.

“Isso não é justo”.

David se aproximou do jovem zumbi.  Então deu uma machadada na perna do menino, que caiu feito uma árvore. David pisou na cabeça dele e desferiu uma machadada na garganta do morto, separando a cabeça do corpo. Em poucos segundos, o corpo do garoto parou de se debater e estancou. David pegou o carrinho de compras que estava em frangalhos, todo amassado no chão.

David Carlyle correu com o carrinho para o quartinho. Fechou a porta, subiu no carrinho e usou o machado para levantar a tampa do recorte no forro. A mangueira de incêndio caiu sobre ele. David lançou o machado para o alto e agarrou firmemente na mangueira. Pendurou-se nela e subiu, até agarrar no degrau chumbado na parede. David subiu até alcançar o machado e fechou a tampa de acesso ao quartinho.

Quando David chegou no quinto andar, viu que a porta estava trancada. Não havia sinal de Alice em parte alguma.

David olhou com cuidado, forçando os olhos na escuridão. Então ele pisou em algo que estalou. David abaixou-se e pegou a caneta. Ela estava na entrada do banheiro, e abaixo dela estava um papel. David correu com o papel até a janela, onde a luz da lua iluminou tudo e ele pôde ler:

David,

Tem gente no prédio. Alice

David lembrou-se do tiro que ouviu ser disparado no alto. Ele correu com o machado e começou a desferir golpes na porta.

Lá em cima, Alice estava nua na cama. Estava bêbada. Sentia  tudo rodar ao seu redor.

Paul chegou perto, mas não deitou perto dela. Ele apenas desabotoou a calça e tirou o pênis para fora.

Alice ficou olhando pra ele, com uma expressão de pavor.

-O que você vai fazer? – Ela perguntou aflita, tentando se cobrir com o lençol.

-Vou me satisfazer. Depois você terá o mesmo destino dos outros.

-Outros?

-Sim. Os outros.

-Então é tudo mentira?

-Em parte é. Sabe como é. Todo mundo precisa comer. Principalmente eu.

-Mas então quer dizer que…

-Verdade. O seu bife era um pedaço do Ney.

Alice olhou para os freezeres.

-Então a conversa de açougue era balela?

-Era. Estou comendo gente porque não há como sair desta merda. Não há mais comida.- Ele assumiu.

-Canibal! Monstro!- Alice gritou. Ela tinha vontade de vomitar.

-Pode me chamar do que quiser, gostosa. O fato é que eu vou te comer. E será duas vezes! – Paul riu maníacamente. -Mas antes, vou fazer um cinco contra um aqui. Fica paradinha aí e abre bem essas pernas. Me deixa ver este grelinho molhado! Anda porra! Ou vou atirar! Um… Dois…

Alice abriu as pernas.

-Agora mete o dedo nessa racha! Anda!

Ela ia obedecendo. Enquanto com uma mão Paul segurava a arma, na outra tinha o pênis. O cão apenas olhava a cena com a expressão estúpida.

Alice pensou em David.

Subitamente, Lolita começou a latir descontroladamente. Paul largou o pinto e segurou a arma apontando para o corredor.

-Que foi, Lolita? Que foi?

O cão estava latindo muito.

A porta se abriu e dela surgiu o zumbi com o machado na mão.

-Não! – Paul gritou assustado. Disparou duas vezes contra a criatura. Mas estava nervoso demais para conseguir mirar. Errou o primeiro e o segundo tiros.

Alice mais do que depressa, agarrou o travesseiro da cama e arremessou-o contra Paul. O travesseiro atingiu a arma desviando a pontaria dele.

-Maldita! – Ele gritou desvencilhando-se do travesseiro. Apontou a arma pra ela. Mas não teve tempo de atirar. O machado sibilou no ar e decepou-lhe o braço.

Paul ficou gritando em choque ao ver o braço amputado caído no chão com o revolver na mão.

-Ahhhhh! Nãaããããããão! – Paul gritava desesperado. Até tentou correr, mas era tarde. O zumbi agarrou Paul pelo pescoço e o  lançou do parapeito.

Paul girou no ar gritando enquanto seu corpo bailava no vazio. Ele atingiu o solo e explodiu numa poça cremosa de carne e sangue, que imediatamente foi soterrada de zumbis famintos.

David virou-se para Alice. Ela estava nua na cama. Alice saltou da cama, correu e abraçou David apertado.

-Meu amor. Meu amor! – Era tudo que Alice dizia.

O zumbi olhou ao redor.

O cão ainda estava a latir. David avançou sobre o cão, mas Alice o impediu.

-Não. Deixa que essa daí eu faço questão. – Falou Alice.

Ela pegou a arma na mão decepada de Paul. Mirou no cão e deu só um tiro. O animal morreu na hora. Alice agarraou o corpo gordinho de Lolita e lançou do parapeito.

-Vai, junte-se ao seu dono, bicho maldito!

Os dois abraçam-se novamente.

David olhou para cima e viu a pirâmide de luz. Olhou ao redor e viu os freezers, o fogão. A cama, o radio…

David apontou para o roupão de Alice no chão. Ela disse que teve medo que Paul a  forçasse a fazer sexo com ele, mas apenas se masturbou.

David andou pelo alto do prédio. Olhou ao redor. David Carlyle tirou a mochila das costas e estendeu a mesma,  envolta nas sacolas plasticas para ela. Alice se assustou ao ver os pedaços de carne, mas ficou feliz ao descobrir a carne enlatada.

-Spam! Que bom!

Alice o convidou para jantar. David sentou-se à mesa. Alice ainda nua, aqueceu a carne enlatada na frigideira. Ela pegou um pedaço enorme do fígado do alpinista e colocou com cuidado num prato. Em seguida, serviu a carne para David.

Alice tomou um gole de vinho. David pegou  o bloco do bolso e escreveu algo. Depois estendeu para Alice.

Como nos bons tempos da cabana.

-Espero que a noite termine do mesmo jeito daquela. – Ela disse, esfregando o pé na perna do zumbi, sob a mesa.

Alice comia carne enlatada e David mastigava com vigor o bife de gente morta feito com o fígado do alpinista. David sentia um grande prazer. Se sentia forte novamente. Revigorado. O efeito da carne humana no corpo dele parecia um pequeno milagre.

Alice saiu da mesa e sentou nua no colo dele. Ela beija o pescoço do zumbi. Ofereceu mais vinho a ele. David bebeu o vinho. Alice pegou o pedaço do fígado sobre a mesa e derramou o sangue sobre os seios dela. O sangue escuro escorreu sobre a pele dela, lambuzando-a.

David agora lambia o sangue no corpo da mulher. Alice deliciava-se com a língua fria de David percorrendo seu corpo. Ela deitou sobre a mesa, empurrando pratos, garrafa, taças, talheres e guardanapo para o chão.

David lambia o corpo da moça.  Alice sentia o sangue a lambuzar e foi ao delírio com seu corpo deslizando meladamente contra o corpo do zumbi.

David não conseguiu mais conter a ereção.

Alice saiu da mesa, empurrou David na cama. Em seguida, saltou felinamente sobre ele. Ela tirou sensualmente a roupa do zumbi. E em seguida, deitou junto dele.  Eles olharam o céu estrelado. As estrelas pareciam pular. A noite soprava uma brisa agradável.

Alice saltou sobre David. Ela o cavalgou. David beijou a mulher e os dois sentiram o gosto do sangue. David faz amor com Alice na cama de Paul. Os dois chegaram juntos ao clímax.

-Eu te amo muito, sabia? – Alice gemeu baixinho na orelha de David.

Alice se aconchegou nos braços de David e depois de algum tempo olhando as estrelas no céu, dormiu.

David também fechou os olhos. Pensou em como seria bom se ele pudesse dormir. Sentia-se pleno ao lado da mulher que ele amava.

Então antes que pudesse se surpreender, sentiu seu corpo afundando lentamente e perdeu os sentidos. Dormiu.

Quando recobrou lentamente a consciência, havia um zumbido no ouvido dele… O calor era forte. Quando David abriu os olhos, sentiu o sol no rosto. Estava quente. O sol estava a pino. Bem sobre ele. David olhou para o lado e não viu Alice. Estava sozinho na cama.

“O que aconteceu? Tudo apagou. Onde está Alice?” – Pensou.

David se levantou e andou pelo terraço.

“Ela deve ter ido ao banheiro.”

David  sentia as coisas rodando. Estava tonto. Viu os lençóis antes impecavelmente brancos todos manchados de sangue e lembrou-se da noite de prazer com Alice naquela cama. David olhou para o céu e viu as nuvens. O sol surgia entre elas. Pela posição do sol, calculou que a hora estava perto do meio dia.

David saiu pela cobertura, em busca de Alice, mas ela havia sumido.

Aquilo era estranho. Alice havia desaparecido. Ele foi em busca dela. Subiu pela escada em direção ao heliporto, onde estavam os holofotes. Ao chegar lá em cima, deparou-se com Alice, nua, olhando para a paisagem distante.

David aproximou-se por trás dela e a abraçou a moça com carinho, pela cintura. Alice não reagiu.

Soltou apenas um leve gemido. David se assustou e olhou para ela. Alice tinha os olhos revirados. Estava fria, numa espécie de transe.

“Puta merda! Ela virou um zumbi!”

Continua amanhã

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Sabia que não ia dar certo…Sinceramente a Alice foi muito idiota de se lambuzar de sangue e transar com um zumbi(Sangue, transa e zumbi, até um idiota ia ver isso), e achei um exagero matar um cão Philipe, é apenas um cão. Ainda sim está ótimo, e a participação especial do PC Siqueira foi show! Pena que está acabando.

  2. O Paul é o PC Siqueira né?
    Agora a Alice tembém virou Zumbi? Puta Merda Cagada! Eu pensava que a história tava chegando no começo, mas sempre tem alguma coisa e você prolonga o conto, né? Muito boa esta parte!!! Parabéns!!!

  3. – Assassinatos
    – Sadismo
    – Estupro
    – Masoquismo
    – Canibalismo
    – Necrofilia

    Quase todos os tabus da humanidade em um só conto! XD Se fosse na época da inquisição, o Sr. já tinha sido frito em óleo (e nós também – risos)

    Agora PRECISO descobrir quem é o PC Siqueira (raio de leitor que não lê tudo) – qual séries de contos que ele aparece?

    Abraços,

    tio .faso

  4. NÃO A-CRE-DI-TO!!!!!!! A coitada da Alice virou zumbi!!!! E agora, o David vai ficar sozinho… e sem NINGUÉM saber que ele ainda está “lá dentro”???!!!!! AMEI (mais uma vez) a nova parte do conto!!!
    Mas… não precisava ter matado o cachorrinho, não precisa mesmo! A Lolita podia ser uma companhia pro David, já que ele agora tá sozinho, e zumbi só gosta de carne humana mesmo! Tadinho do cachorrinho!
    Abraços… Juju

  5. Demais demais… Adorei ma parte que o Paul tenta acertar os tiros, mais erra.

    Me lembrou daquele filme dos leões em que tem uma hora que uns caras ficam cara a cara com eles separados apelas por umas grades e eles não conseguem a certar um tiro sequer.. kkkkk

  6. Hieauhaiuehaiuheaiuhieua! “Ele tinha um olhar incomum”! Muito bom! Porra, PC Siqueira tarado! Porra, Lola! Porra, Philipe! ;D

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