Último desejo

A família foi reunida às pressas. Aderbal estava ruim. Nas últimas.
Telefonemas, recados, ligações desesperadas para celular e até um telegrama informavam do fato e solicitavam a presença de todos.
Levou cerca de dois dias para todos os membros do clã se reunirem.
Carlos, o filho mais velho, chegou com o carrão importado. Renato, o do meio, trouxe os netos. Regina voltou direto de Nova York para Itaperuna. Sandra e Nina as filhas de Regina compareceram com os filhos, Sarah, Obiel, Matheus e Lucas, mais os respectivos maridos. Antônio veio com a namorada – a nova, pois a anterior, aquela que tinha coxas grossas, o traiu com outra garota.
Havia um clima de festa no ar. As crianças, alheias a urgência dos fatos, ignoravam solenemente qualquer sintoma de comoção para brincar no jardim.
Estavam todos reunidos na ante sala do hospital. O medico surgiu para dar os esclarecimentos à família.
-A situação é grave sim. -Respondeu ele a alguém.
-Quanto tempo ele ainda tem? – Perguntou Carlos.
-Pouco. É difícil dizer. Ele era um homem forte. -Respondeu o médico.
-É. – Disse secamente Antônio.
-Hã? – Perguntou o médico sem entender.
-Ele ainda é um homem forte, doutor. Ele ainda está vivo. -Disse a namorada de Antônio, uma Argentina, a tal de Francesca.

O médico ficou meio sem graça. Concordou com a cabeça.

-Maldita enfisema pulmonar.
-Câncer. -Respondeu o médico.
-Que seja. É tudo a mesma merda. Verociferou Regina, sentando-se na beira do sofá encardido.
-Bem, não há muito o que possa ser feito agora. Nós vamos fazer todo o possível para que a travessia dele seja o mais tranqüila possível. -Disse o médico.
-Veja o lado bom, Gina, ele viveu o máximo que podia. Nunca se poupou de nada. – Falou Carlos.
-Abusos, você quer dizer. Álcool e cigarro. -Disse ela, sem olhar nos olhos do irmão.
-Prazeres, Gina. Prazeres. O que adianta viver a vida de privação se a morte é a única coisa certa nessa vida? Já que é pra morrer, prefiro morrer tendo vivido bem. -Respondeu Carlos.

O médico saiu da sala, deixado os membros daquela família a sós para resolverem suas pendências.

Francesca chamou Antônio num canto e perguntou em seu ouvido porque Carlos e Regina não se olhavam. Antônio respondeu que Carlos e Regina não se falavam há cinco anos desde que uma briga entre os filhos de ambos causou um stress na família. O caldo entornou e desde então eles passaram a se evitar.
Enquanto a maioria conversava amenidades, um ou outro folheava uma revista velha. Ninguém entre eles tinha coragem de perguntar o que todos estavam de fato fazendo ali. Não havia razão de perguntar pois a verdade é que todo mundo, com exceção das crianças sabiam que estavam esperando a natureza seguir seu curso. Era estranho aguardar a morte de um parente querido.
Havia se passado aproximadamente uns quarenta minutos quando finalmente surgiu a enfermeira da clínica com a autorização da visita. Antes que entrassem, ela foi clara sobre os procedimentos.
Os familiares dirigiram-se ao andar onde no fim de um longo corredor, no quarto 408, estava Aderbal.
Quando eles entraram no quarto, na cama, estava o velho. Magro, quase um esqueleto. Os olhos fundos e escuros. O cabelo ralo, branco. Na verdade estava mais para um amarelado, pelo tempo e pela nicotina.
Em sues braços, tubos de soro. Ao seu lado, maquinas de monitoramento.
A família entrou de forma solene. Perfilaram-se os filhos ao redor da cama. Todos em silêncio. As crianças não entraram. Os netos, mais atrás. Durante alguns minutos reinou apenas o silêncio. Ninguém dizia nada.
O velho, na cama, fraco e doente, apenas olhava. Olhou fixamente cada um deles através da catarata.
Foi Aderbal, com muita dificuldade que rompeu o silêncio.
-Eu ainda não morri. -Ele falou, quase num sussurro ofegante.
Todos riram nervosos. E como numa magica, quase todo mundo começou a falar ao mesmo tempo.
As mulheres tentavam animá-lo dizendo que ele iria sair dessa. Os filhos comentavam sobre o calor insuportável de Itaperuna. E os netos falavam alguma coisa, mas certamente não era importante e seja o que for que falaram, era impossível distinguir com todos falando ao mesmo tempo.
Aquela era a difícil sensação da despedida. O momento derradeiro se aproximava galopante.
O médico observava tudo em silêncio, no canto.
Cada um dos filhos se despediu do pai. Aderbal passou boa parte do tempo em completo silêncio. Acenava com a cabeça apenas, evitando o esforço de falar.
Após a despedida, Aderbal olhou para o medico. Ele inclinou a cabeça e houve um breve instante de silêncio.
-Posso… Quero falar com ele. Sozinho. -Disse o velho, apontando o dedo magro e torto para o médico.
Todos ali se entreolharam. Inclusive o médico.
-Comigo?
Aderbal acenou positivamente com a cabeça.
Todos se moveram lentamente. Meio ressabiados. As pessoas foram saindo, uma a uma, até que só restou o médico.
Sozinho, ele e o velho. Aderbal respirava com dificuldade. Vários segundos entre cada respirada.
O medico se aproximou do leito de morte.
-Fecha a porta. – Disse Aderbal.
O medico atendeu prontamente o pedido. Depois voltou-se para a cama.
-Pois não?
-Tem um cigarro aí? -Perguntou Aderbal, movendo os dois dedos na direção da boca, já quase sem dentes.
O médico ficou sem ação. Meteu a mão no bolso e tirou o maço. Dali puxou um cigarro. Acendeu e colocou na mão trêmula do velho.
Aderbal levou o cigarro à boca e deu uma profunda tragada, fechando os olhos para apreciar todo o prazer da fumaça.
Fumou em silêncio todo o cigarro, enquanto médico o olhava com piedade.
Quando o cigarro finalmente se resumia a uma mera guimba fumegante em suas mãos magras, o velho morreu.
Os aparelhos apitaram e o medico os desligou.
Em seguida ele saiu do quarto.
Do lado de fora, toda a família reunida esperava para saber o que era a coisa tão importante que Aderbal tinha para contar ao médico.
-Ele morreu. -Disse o doutor.
Algumas pessoas choraram. Outras apenas baixaram a cabeça em silêncio. Mas logo em seguida a curiosidade suplantou a tristeza.
-O que ele disse, doutor?
-O que ele falou? Algum segredo? Ele disse onde está o dinheiro?
O médico olhou para os filhos, netos e bisnetos de Aderbal. Pensou por um momento e disse:
-Olha, nesses momentos só me resta dizer a verdade. Ele disse que não queria mais saber de brigas na família. Que todos vocês devem se unir e viver em paz. Ele disse que estará sempre olhando por todos vocês e que deseja que sejam todos muito felizes. Até logo.

Em seguida o médico saiu, deixando aquela família e seus problemas, agora em processo de serem resolvidos, para trás.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

    • Não, meu tio era o médico fumante. No caso, eu não sei o que ele disse a familia, daí inventei este final. mas conhecendo o tio Waltinho, acho que ele deve ter dito: “Ele me pediu um cigarro”.

      • eu ja ia dizer besteira…

        ia chamar tua historia de conto tosco com médico irresponsável…

        as vezes a vida é bem mais cruel que a ficçao.

        UmPonto

    • Essa parte sobre o tal dinheiro eu tb inventei. O caso do meu tio era centrado na desgraça do cigarro, onde até o cara no leito de morte, vítima da desgraça do cigarro pediu pra fumar unzinho.

  1. ESSA do cigaro, é mesmo verdade, Eu já vi isso uma vez. O moribundo no leito de morte nos seus últimos extertores, pediu um cigarro : estou sentindo cheiro de fumaça de cigarro, queria tanto dar uma tragada (ele havia fumado a vida toda), voce pode me errumar um? – NÃO, disse a filha, fumar faz mal, tá loco? Você tá quase morrendo e ainda quer um cigarro? E equi é um hospital, é PROIBIDO FUMAR- Ela nem se deu conta que aquele podia ser o ultimo pedido do pai. (ele já ia morrer de qualquer jeito mesmo!) E MORREU minutos depois.

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