Tragédia Cigana – parte 1

Alexander abriu os olhos. Ficou a observar o brilho do sol surgir entre as árvores. Ao seu redor ele podia escutar o som dos gemidos tristes das carroças puxadas pelos cavalos baios.

-Já acordou garoto? -Perguntou Ephraim.

-Já, senhor. Acho que dormi até demais. Quer que eu pegue as rédeas?

-Quero sim. Faz favor. – Disse o velho levantando-se da cocheira com um gemido.

-É a coluna novamente? -Perguntou Alexander.

-Não. É a idade mesmo, menino.  Ela vem e tudo começa a falhar. Sabe, a última vez que passei nesta estrada eu era um jovem como você. Cheio de vida, sonhos e ideias… Agora olhe só pra mim. Um velho. Um velho cigano decrépito.

-Ah, não diga isso, Ephraim. Todos nós sabemos que não há melhor que você nas artes e na música.

Ephraim não estava ouvindo nada. Ele estava preso às lembranças do passado. Tomou um gole de água e sentiu o cheiro da manhã. O cheiro da manhã sempre lhe lembrava Carmen. Enquanto a fila de carroças cruzava a estrada em meio a uma floresta de pinheiros, uma bruma fraca se espalhava pelo ar.

-Ephraim… Ephraim? Ei, velho, estou falando com você!

-Hã? Ah, sim, sim. Estou ouvindo garoto. Estou ouvindo. -Disse o velho sentando na cocheira ao lado de Alexander.

-É mesmo? Então o que foi que eu disse?

-É… Bem. Quer dizer… Ah, você sabe.

-Aposto que estava pensando na minha avó novamente.

-É, menino, acertou. -Disse o velho cuspindo no chão. – É assim quando amamos muito alguém. Mesmo quando a pessoa se vai, uma parte dela fica dentro da gente.Você vai sentir isso quando Mikaela casar com você.-Falou Ephraim dando um soco de leve no braço de Alexander.

-Ah… Vai começar com isso novamente, velho?

Alexander ficava sem graça e completamente vermelho quando o nome daquela menina era citado.

Mikaela cresceu amando Alexander. Desde que os dois eram crianças, estavam predestinados ao casamento, combinado entre o falecido pai de Alexander e Zatanna, a tia de Mikaela. Mas Alexander nunca amou Mikaela. E se culpava por isso. A pressão do grupo para que os dois se casassem era grande. Estavam sempre falando nisso. Alexander mudava de assunto, fugia o quanto podia daquele destino. Mikaela, por sua vez buscava sempre estar à vista de Alexander.

Mikaela era uma menina pequena, loura de olhos profundamente azuis. Era bonita e misteriosa. Desde bem pequena, quando sua mãe morreu no parto, Mikaela foi criada pela tia Zatanna, que era a irmã mais velha de sua mãe.

Zatanna era agora uma velha decrépita. Manca de uma perna com braços tão finos que pareciam gravetos e a voz trêmula que lhe conferia um aspecto assustador. As crianças temiam Zatanna e pensavam que ela era uma bruxa. Ela era um problema recorrente para o grupo de ciganos, pois em cada vilarejo que passavam Zatanna despertava medo e ataques. As pessoas jogavam ovos e tomates nos ciganos, tentando afugentar os “feiticeiros”. Era difícil ser um cigano, pois as pessoas sempre os tratavam mal e a aparência decrépita de Zatanna não colaborava em nada para melhorar a imagem deles. Para dizer a verdade, Zatanna parecia fazer todo o possível para que as pessoas a temessem. Tão logo percebia os olhares de medo, ela encarnava um tipo de comportamento de bruxa, rindo alto com aquela boca sem dentes e os olhos esbugalhados.

Zatanna sempre tratou Mikaela bem, apesar de ser extremamente rígida com as demais crianças. Mikaela podia tudo. Era chamada de pequena ninfa por Zatanna que cuidava da menina como se fosse uma neta. Zatanna tinha um forte amor pela irmã e sofria de um certo sentimento de culpa por não ter sido hábil o suficiente durante o parto, de modo que no fundo, sentia-se responsável por Mikaela ser órfã.  Talvez por isso ela fosse a única criança que a “bruxa” aceitou perto de si ao longo dos anos. Zatanna era versada em quiromancia e rituais.  Ensinou muitos deles a Mikaela, como as consultas ao oráculo e o conhecimento de ervas e pedras.

O velho Ephraim cuspiu no chão, levantou-se e olhou para o céu por alguns instantes.

– Alexander, a noite vem surgindo depressa. Temos que ver algum lugar para pernoitar. Sugiro que você pegue um cavalo e vá até mais adiante em busca de algum lugar. conheço um poucio estas estradas e pelo que me lembro a estrada é estreita por um longo trecho. Acho que teremos que abrior uma clareira ou a noite nos pegará de surpresa.

-Ah. Tudo bem. Deixa comigo. -Disse Alexander subindo num dos cavalos que vinham amarrados na lateral da carroça.

-Ah.. Garoto… -Gritou Eprhaim.

-Diga velho.

-Cuidado, hein?

-Eu volto, velho. Eu volto. -Gritou Alexander, cavalgando um garanhão para dentro da floresta.

Alexander percorreu um bom pedaço com o cavalo. Ele se dava bem com os animais e tinha jeito para batedor desde muito jovem.

Ele sabia que precisava encontrar uma área bem larga para que as dezoito carroças do grupo pudessem se instalar. Cavalgou pela trilha até o sopé da grande montanha, que eles teriam que transpor.  Alexander parava de tempos em tempos para consultar o mapa. Chegou no local indicado e começou a procurar pelo lugar ideal. O segredo do lugar era estar perto o suficiente de uma fonte de água, e não ter árvores muito grossas. Isso porque árvores grandes e grossas não poderiam ser facilmente derrubadas.

Depois de alguns minutos de procura, Alexander conseguiu encontrar o local ideal. Marcou o lugar com dois lenços e retornou para a trilha em direção ao comboio.

Enquanto corria pela estreita trilha que mal dava passagem a uma carroça, Alexander pensava em seus pais. Ele sentia alguma saudade deles, mas havia perdido os pais quando era muito jovem e não conseguia se lembrar do rosto de sua mãe, mas apenas da voz dela.

A luz da tarde diminuía rapidamente, tingindo o céu de tons laranja e fazendo as nuvens cada vez mais escuras num cinza-azulado.

Subitamente, o cavalo pisou numa pedra que se soltou e ele caiu. Alexander capotou por cima do animal, batendo violentamente contra uma árvore. Em seguida girou de lado, e desceu o terreno íngreme rolando.

Ele tentava inutilmente se agarrar aos galhos, troncos e raízes, mas pegava cada vez mais velocidade.

Alexander desceu rolando em direção a uma pedra e numa fração de segundo percebeu que estava destinado á morte certa. Uma imensidão surgiu diante dele. Era um abismo.

Alexander percebeu que estava na pior situação de sua vida e instintivamente fez todo o esforço possível para se agarrar em algo. Agarrou-se finalmente em uma raiz, mas esta arrebentou com o tranco, servindo apenas para reduzir a força de sua queda. Ele enviou com toda força que tinha as mãos no chão em busca de algo que pudesse agarrar. Conseguiu agarrar-se precariamente à beira do penhasco. Olhou para baixo e viu com horror que estava pendurado a mais de oitenta metros de altura. Abaixo dele, o vazio e ao fundo, um desfiladeiro com rochas pontiagudas. Se ele não agüentasse se segurar, a morte seria certa.

Alexander tentou retomar a segurança buscando alcançar a beira do precipício com uma das pernas, mas era inútil. Todo arranhado e sangrando, ele estava se segurando apenas com os braços. O corpo balançando no espaço.

Alexander começou a gritar por socorro. Mas era inútil. O único ruído que ouvia eram os ecos dos seus próprios gritos e os pássaros da noite começando a cantar. Seus músculos tremiam. Ele só pensava em sobreviver. Gritou o máximo que pôde até começar a se sentir sem forças. Já não podia mais sentir os braços. Ele estava ali fazia vários minutos e nada que lembrasse o trote de cavalos ou algo parecido aconteceu.

Alexander contemplou a real possibilidade de morrer. Olhou novamente para baixo. Uma pequena apedra rolou e caiu. Ele ficou observando a pedra girar no vazio até atingir uma rocha enorme no fundo do buraco e partir-se em vários pedaços. O jovem cigano se arrepiou. Pensou se devia lutar contra o destino ou entregar-se à morte de uma vez. Estava ficando cada vez mais escuro e caso anoitecesse, ele sabia que seria impossível ser encontrado.

Decidiu lutar. Segurou-se com toda a força na beira do penhasco e resolveu tentar novamente um movimento com a perna. Foi quando ouviu um estalo. Aquele era um estalo bem característico. Ele sabia o que significava. A rocha no qual estava apoiado estava começando a se soltar do terreno arenoso.  Se ela se soltasse de uma só vez, o destino dele seriam as rochas ao fundo do desfiladeiro. Alexander decidiu não se mover. Gritou por vários minutos enquanto sentia todas as suas forças lentamente o abandonarem. Começou a sentir uma tontura. Um misto de sono, fraqueza e cansaço. Alexander fechou os olhos e preparou-se para largar a rocha.

(Continua amanhã)

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Exelente narrativa Philipe….
    Eu acredito que a verdadeira alma de uma boa história está na narrativa, e não necessáriamente na história…..
    Qualquer história pode ser boa o suficiente se narrada com destreza!
    Ficou perfeito…adorei!
    A propósito Philipe… eu admiro demaisadamente ssa habilidade de narrar, mas eu não tenho o menor talento para isso!
    Minha frustração é imensa… principalmente quando eu bolei uma historia de ficção cientifica com conspirações, futuro holocaustico, migração planetaria e ets, mas não sei colocar isso decentemente no papel!
    AHHHH….eu queria saber narrar!

    Certamente eu teria a honra de conceder essa fantástica história para vc se vc não fosse tão ocupado…. mas talvéz vc pudesse dar um feedback sobre a história na forma sintetizada como ela está…
    Vc gostaria de saber resumidamente como é essa história?

    Obrigado…. e parbéns pela narrativa…. quero ver a parte 2 logo!

  2. esta bem bacana, nao consegui captar quando se passa a historia, mas imagino que seije na epoca medieval o que da um clima bem de fantasia a historia que vem por ai. Estou no aguardo cara.
    Andre

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