O experimento Carlson

Estava bastante frio naquele dia. Morten lembrou-se dos dias quentes de verão em Malta, conforme esperava a chegada do helicóptero. Ao seu lado estavam Benjamin F. Duncan, gerente de operações e Malik Devgan, superintendente de planejamento.
Todos pareciam ansiosos e,  de fato, era impossível esconder o nervosismo diante do que estava para acontecer. Além disso, todos ali sabiam dos riscos.
Malik foi o primeiro a entrar na aeronave, seguido por Morten. Duncan ainda deu dois telefonemas lá fora antes de finalmente entrar e acenar para o piloto que estavam prontos.
A viagem para o centro de pesquisas foi curta, nada além de vinte ou vinte e dois minutos. A instalação de pesquisas era cuidadosamente planejada para não ser acessível por terra. Escondida num maciço rochoso de grande altitude, sem estradas ou rotas de fuga, o lugar era perfeito para esconder qualquer um… Ou qualquer coisa de olhares curiosos. Metade da construção era externa à montanha, esculpida por fora cuidadosamente para se disfarçar. De fato, se você não soubesse onde procurar, não veria nada além de lajes de pedra basáltica com milhares de anos empilhadas. Mas abaixo da superfície mimética, estava um complexo de quatro andares escavados na pedra. Dadas as dificuldades de acesso, somente uma equipe muito pequena de pessoas tinha permissão para ingressar no complexo. O grande volume de cientistas trabalhava numa base militar de pesquisas a 70 km dali, chamada “central”.

A razão era prática. Na “Central”, aviões traziam e levavam os pesquisadores, mas no complexo da montanha, chamado popularmente “o buraco”  pela equipe, somente aeronaves de pequeno porte capazes de decolagem vertical eram permitidas. Assim, o staff se dividia por andar. As equipes de A/B dormiam no buraco quatro meses por ano. Voltavam para suas casas, passavam dois meses em “férias” e depois e embarcavam novamente para mais quatro meses de internação. Um engenhoso – e caríssimo – aparato de disfarce ajudava a explicar o sumiço dessas pessoas. Eles eram “militares” em operações de missão de paz. Assim, dezenas de famílias acreditavam que seus entes queridos estavam trabalhando no Congo, no Mali, na Líbia ou na costa das Filipinas, mas na verdade mesmo, ninguém nunca saía do país. Nos dias em que o tempo ajudava, duas equipes iam e vinham da “central” em dois horários, logo cedo e no final da tarde.
O lugar era realmente um desgraçado. Metade do ano as montanhas ficavam praticamente inacessíveis a aeronaves “normais” devido ao mau tempo, neblinas e ventos perigosos. Uma série de sinalizadores de frequência de radio especial foram implantadas nas montanhas, de modo que logo após a decolagem, as aeronaves operavam no automático. Isso significava que ninguém realmente pilotava pro Buraco. As aeronaves “sabiam” o que fazer, porque elas enxergavam além do que a visão humana era capaz.

A razão para construir o buraco num lugar tão estúpido se justificava pelos riscos. Se algo desse “errado”, a operação seria cancelada o buraco seria lacrado com quem quer que estivesse dentro e “nada daquilo teria acontecido”. As famílias receberiam bandeiras de agradecimento e notícias tristes sobre ataques surpresas em confrontos terroristas, ou acidentes corriqueiros.

Quando a aeronave desceu pelo túnel de acesso e os portões se fecharam acima dela, diversos membros da equipe se reuniram no Hangar para ouvir as palavras de Duncan.  Morten e Malik se juntaram a ele perto do pequeno púlpito. Diante deles estava a mais cristalina e preciosa nata de engenheiros cientistas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. Eram três dezenas das mentes mais fantásticas – e bem pagas – do planeta.
Duncan iniciou seu discurso breve informando que estavam com sinal verde para iniciar a operação da planta. Todos aplaudiram esfuziantemente, porque até no dia anterior havia muitas duvidas se o projeto seria realmente liberado como havia sido previsto. As simulações apontavam chances grandes de sucesso, mas as pessoas da inteligência não costumam se prender muito aos números.

Após Malik cansar a todos com seu inglês estranho e um discurso interminável que parecia mais um livro de auto-ajuda, Morten Carlson fez seus agradecimentos. Em seguida, foi cumprimentado por um grande numero de pessoas. Caras que ele via todos os dias, mas aquele era um momento especial. Talvez ele não os visse nunca mais. Apertou tantas mãos que até se sentiu um político.

Quando soou o alarme nos andares superiores, todos se enfiaram nos uniformes. Havia uma tensão no ar, uma sensação ao mesmo tempo boa de vibração e confiança, mas todos ali tinham em seu íntimo, um medo. Um medo de que algo saísse errado. Uma coisa era mandar uma cadeira velha ou uma bola de vidro. Mas mandar gente era outro departamento de riscos.

Morten entrou no salão. Quando a enorme porta se fechou atrás dele, foi como ficar trancado no Fort Nox.  Ele caminhou 120 passos. Contou um a um, como sempre gostava de fazer. Seus passos ecoaram na enorme câmara de aço. No andar acima,  um grupo de vinte cientistas analisavam dados em monitores, assistindo num telão o pequenino homem andar até uma cadeira de metal no centro da caixa blindada. Nas quadro paredes poderosos indutores de ondas D estavam direcionadas para o centro da câmara.
Morten Carlson sentou-se e atou a fivela do cinto de segurança. Fechou o capacete, consultou os dados do equipamento de respiração e verificou pela quarta vez as leituras biométricas. Depois, fez um joinha para a câmera.
Não tardou para os auto-falantes ecoarem a voz de Malik: – T menos nove!
Morten se agarrou nos braços da cadeira. Não sabia o que poderia acontecer.
-T menos oito… – E assim, Malik prosseguiu, até chegar a zero, quando suas últimas palavras foram: – Boa sorte Carlson! Iniciando o campo!

Uma sirene disparou e Carlson começou a sentir a poderosa vibração agitando o ar. Sentiu-se como uma pipoca dentro de um poderosíssimo microondas. Sua boca estava seca. Seus olhos começaram a arder. O som cresceu progressivamente em uma vibração ritmada que o atingiu como uma onda de choque de uma bomba: MMMMMMMMMMMMMMM…
A vibração se amplificou até que Carlson temeu que seus ouvidos iriam explodir. Ele passara meses e meses jurando para si que manteria os olhos abertos, mas falhou miseravelmente. Houve uma explosão como um raio caindo perto dele. Morten apertou os olhos com toda força, temendo ser seu fim.

Ele se forçou a abrir os olhos, mas viu tudo incrivelmente branco e o som desapareceu. Foi como uma mágica.  Num momento, era como estar no centro de um gigantesco furacão. No segundo seguinte, ele estava num vácuo frio. Então, veio o calor branco sufocante. A vibração novamente explodiu ao seu redor e ele novamente fechou os olhos como um reflexo primitivo de susto. Quando ele reabriu, tudo que viu foi uma explosão de partículas para todos os lados, formando um nevoeiro denso. Uma nuvem compacta de fumaça.

Levou alguns segundos para se dar conta do que via. Não era fumaça, mas areia!
Carlson tinha dificuldades para acreditar no que estava vendo. À medida em que a poeira foi se espalhando, e enfraquecendo, a visão se clareou.  Era um rochedo enorme, pontudo, se erguendo diante dele. Ao sei redor, somente areia. Uma planície que parecia se perder no infinito. Mas bem diante dele, o rochedo dominava a paisagem como um pináculo majestoso se erguendo em direção ao céu impreterivelmente azul.
Morten desconectou-se de cadeira.  Pisou no solo e suas botas afundaram na areia fofa.  Sentiu através da sola as pequenas pedrinhas se fragmentando diante de seu peso. Foi na parte de trás da cadeira e desaparafusando as placas removeu uma carenagem e dali tirou a mochila.
Andou uns dez passos e olhou ao redor. Nada. Não se via nada além do rochedo. O sol brilhava com enorme força. Carlson sentiu o uniforme esquentando. Andou até o rochedo na esperança de encontrar uma sombra. A mochila era mais pesada do que ele se lembrava do tempo dos exercícios.
Agradeceu por ser areia e pedras e não um oceano.
A areia era bastante macia e andar nela era algo difícil, mas apesar disso, chegou logo no paredão de pedra. Sentou-se sob o ressalto de rocha para um descanso. Pegou a água na mochila. Estava sob a proteção de uma pedra ígnea com certeza, mas de natureza estranha. Notou certas cristalizações parecidas com quartzo em veios subindo pela pedra próximos a uma fissura na rocha.
Consultou a bussola do computador atado ao braço. Ela girava loucamente. Talvez fosse magnetita na pedra.
O computador do traje indicou grande concentração de Oxigênio e nitrogênio. A atmosfera era densa. Ele mandou fazer uma verificação e o painel exibiu um “OK” em uma bolinha verde logo depois.
Diante disso, Morten Carlson desconectou o capacete e respirou o ar do planeta. Ar puro como nunca havia experimentado antes.
Tentou em vão dar a volta no rochedo, mas ele era muito grande. O deserto onde ele estava irradiava uma poderosa emissão de calor. Carlson procurou pela rocha uma forma de escalar, fendas, pedras, uma via. À medida em que procurava pensou por um breve instante que nenhum ser humano jamais tinha visto aquele lugar. Parou e saboreou seu momento de glória por alguns segundos. Pensou nos amigos da escola. Sabe-se lá porque, as pessoas pensam coisas estúpidas como esta de vez em quando. “Ninguém iria acreditar” – pensou.
Encontrou finalmente uma serie de rachaduras onde pôde se apoiar e escalar a parede leste da pedra. Os primeiros trinta metros de subida no paredão foram os piores, mas depois, o formato da rocha ajudava. Ela se inclinava lateralmente com um sem numero de aflorações esquisitas e cristalizações curiosas que chegavam a lembrar uma vegetação de pedra. Ali Carlson podia se agarrar e se apoiar para subir confortavelmente. Avançou mais alguns metros.
Quando a subida finalmente se mostrou impossível, com paredões verticais de pedra lisa, ele estancou e olhou ao redor. O deserto se descortinava diante dele como um manto amarelo pálido, que se fundida com o azul desbotado em algum lugar que os olhos não alcançavam pelo intenso brilho.
Carlson então teve medo. Percebeu que estava no único lugar de sombra em um raio de centenas de quilômetros. Seu estoque de água daria para um dia ou dois naquele calor miserável de quase cinquenta graus. O computador informava 44 e meio graus centígrados. Pela hora e posição do sol, estimou em onze da manhã, o que indicava que talvez a temperatura ainda subisse e chegasse a 55.
Sua atenção foi subitamente atraída por uma mancha que se deslocou na pedra. Morten virou-se para ver, mas não conseguiu. Percebera o movimento com a visão periférica. “Uma pedra que rolou?” – Ele se perguntou, avançando na direção da mancha.
Mas logo viu que não. Ali estava algo inédito. Uma espécie de barata. Uma barata da pedra. Uma barata da pedra extraterrestre!

Parada, era praticamente era invisível. Mimetizava-se perfeitamente com o rochedo, como se dele fizesse parte. Morten Carlson sentou-se a um metro do diminuto ser e ficou observando maravilhado. Sua cabeça elaborava uma montanha de perguntas, hipóteses e suposições.
Um animal excepcional. Uma barata da pedra. Sua carapaça era revestida de pedras, como numa especie de “concha” formada com pequenos pedaços de rocha. Uma coisa simples, e o entanto, espetacular. Animal impressionante. Certamente a carapaça teria função de deflexão do forte potencial radioativo do sol. Em seguida seu pensamento foi: “Será que esta merda é carnívora?”

A barata trouxe um alento. O planeta não era inóspito. Devia haver água. Não há vida sem água. E essa barata, tão parecida com a barata terrena… Uma praga galática?
Morten sentiu o vento do deserto soprando forte. Consultou novamente a temperatura, e já havia esquentado quase dois graus.
Ele voltou-se para o caminho e memorizou como faria para descer da pedra. A mochila era um empecilho desgraçado naquele calor sufocante. Analisou as possibilidades. Talvez jogar a mochila lá em baixo e depois descer. A areia macia certamente amorteceria a queda da mochila. As cordas não dariam o comprimento necessário para se pendurar e descer de rapel. Teria que ser na clássica “VIAÇÃO CANELA”. A preguiça o dominou de imediato, apesar do fato de que “para baixo todo santo ajuda”.
Então, ao se voltar para a barata, ela já não estava mais lá. Ou talvez estivesse. Olhou ao redor com cuidado, observando as fendas, os buracos e passagens na pedra, mas nem sinal da barata. Tão rápido quanto apareceu, ela sumiu.
Carlson resignou-se. Havia idiotamente perdido a chance de registrar o primeiro extraterreno oficial da expedição.

Voltou-se para  rochedo.  Foi até a beirada e surpreso, notou algo que imediatamente o arrepiou. As pedras que ele havia usado para escalar tinham se soltado. Havia ali um serio risco de escorregar e cair. Daquela altura, a morte seria certa. Ainda mais com as pedras afiadas e cristalizações de quartzo parecendo lâminas lá em baixo.
Voltou para a única parte com alguma sombra perto do pico. Sentou ali e tomou um pouco de água. O calor estava atingindo o ápice, com certeza. Agradeceu por não ter sido estúpido de lançar a mochila no vazio. Estava exausto. Talvez fosse o sol. A escalada, ou o medo, mas estava tonto. “Talvez o volume de oxigênio na atmosfera” – Pensou.
Morten começou a digitar no tablet suas observações quando ouviu o som característico de pedras rolando. Se encolheu o mais rápido que conseguiu junto ao paredão de rocha. Grandes pedras caíram bem como areia voou por todo lado. Algo estava errado. A rocha começou a tremer.

“Um terremoto?”

De fato, parecia um terremoto. Morten Carlson se desesperou ao notar que a rocha estava adernando. – “Puta que pariu, essa merda vai tombar!”
A pedra oscilou para um lado. Caía uma chuva de pedras pra todo lado. Mas então, milagrosamente, a rocha gigantesca adernou pro outro lado, e Carlson não entendeu mais nada.
Horrorizado, ele sentiu tudo balançar e descobriu que não estava num rochedo.

-“Caceta! É uma barata gigante. ”

(continua)

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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