O diagnóstico

O pai entrou na frente. A mãe veio atrás, com o menino. Ele parecia meio ressabiado, com aquela cara de espanto de criança que acha que a qualquer momento vão meter nelas uma injeção ou coisa que o valha.

Os três pararam como espectros silenciosos diante da secretária que folheava uma antiga revista Caras. Na capa o novo casamento da atriz da novela que já estava na terceira separação depois daquele sujeito que mais tarde veio à tona, era uma tremenda biba.

O pai estendeu-lhe a carteirinha do plano. A dona fez cara de resignação, largou de lado a revista e pôs-se a escrever num papelote. Olhou finalmente para o menino, agora sentado numa das cadeiras da recepção. Ele olhava o teto.
A mãe, muda, acompanhou com os olhos o olhar da secretária para o filho, buscando prescrutar em cada pequeno movimento um indício qualquer de pena. Depois a secretária se levantou e entrou por uma porta.
A família se acomodou. O pai com os olhos fixos na televisão. A mãe tentou folhear uma revista, mas tremia tanto que era impossível ler qualquer coisa. Assim, limitava-se a ver as figuras. O menino zanzava pela antessala.

A porta finalmente se abriu um minuto depois, a secretária saiu e disse baixinho:  – Podem entrar. o Doutor está esperando.

Os pais levantaram-se em silêncio.

-Vem. – Disse o pai secamente para o menino, estendendo-lhe a mão.

O garoto agarrou na mão do pai e entrou com eles no consultório.

Ali diante deles numa mesa, compenetrado escrevendo coisas num receituário estava um senhor de cerca de 70 anos. Cabelos brancos ralos, jaleco branco e cavanhaque cinza. Ele usava óculos de aro fino de ouro e tinha um anel de rubi num dos dedos. Atrás dele, dezenas de diplomas, prêmios  e atestados na parede depunham sobre suas credenciais.

-Bom dia. – Eles disseram quase ao mesmo tempo, tentando erguer um sorriso amarelo. Mas o médico não disse nada.

O médico apenas os olhou por cima dos óculos. E então se voltou para o garoto.

-Oi amiguinho. Como é seu nome mesmo?

-Jhonny Quest!  – O garoto respondeu sorrindo.

O médico se voltou para os pais com a expressão séria.

Os pais se etreolharam sem graça. O pai deu um puxão no braço do garoto e lhe sussurrou entre dentes: “fala o seu nome direito! Olha o que eu te falei em casa hein?!”

O menino baixou os olhos e disse com o fio de voz: – Irineu Junior.

-Muito prazer, Irineu. Eu sou o Tio Carlos. – Disse o homem de jaleco apertando a frágil mãozinha.

O médico levou o menino até uma mesinha pequena no canto da sala e deu-lhe uns palitos e umas folhas.

-Aqui pra você se distrair um pouquinho enquanto o tio conversa com o papai e a mamãe, tá?

-Tá! Tá! – Disse o menino empolgado.

O médico então voltou-se para os pais.

-Então foi a escola que encaminhou né?

-Sim senhor. Falou a mãe.

-E quando vocês notaram algo estranho?

-Ele… Ele fica com essas brincadeiras. Sabe?

-Não, diga mais. Que tipo de brincadeira?

-Aquelas tipo… “Sou o homem aranha”. Agora eu “sou o Ayrton Senna”! Agora eu sou o…

-Certo entendi. E mais alguma coisa? Ele dorme bem?

-Sim, não tem pesadelos nunca, mas ele… Sonha.

-Sonha? Tem certeza?

-Tenho sim senhor. E pior, ele… Ele gosta de… – A mãe sussurrou algo incompreensível.

-De quê?

-De-desenhar. – Ela disse, ja com lagrimas nos olhos.

-Meu Deus! Tão novinho. Já está desenhando? – Gemeu o médico espantando.

-Pior, doutor. O menino agora quer usar fantasias. Pediu que o pai lhe comprasse uma do Batman. Veja o senhor, do Batman!

-E vocês compraram?

Diante da pergunta, a mão logo se ofendeu. -Claro que não, doutor! Tá louco? O que o senhor pensa que somos? Irresponsáveis? A escola ja pensa que somos nós que estimulamos… Eu não aguento mais. Não aguento mais!

-Sim, entendo, desculpe, senhora… É que eu sou obrigado a perguntar, vocês entendem. E músicas? Ele canta?

A mãe não respondeu. Apenas se limitou a mover a cabeça positivamente enquanto limpava as lágrimas.

O médico pediu licença, disse que ia examinar o menino.

Levantou-se e foi até a mesinha. Puxou uma banqueta e ficou observando o garoto entretido com os palitinhos.

-E aí Irineu?  Tá fazendo o que?

-Um castelo.

-Mas só tem dois palitos aí.

-São as colunas do castelo.

-Mas com só dois palitos?

-É que ele é invisível.

-Mas e as colunas? Eu vejo somente as colunas.

-É que o bruxo que está no castelo invisível não teve poder suficiente para tornar o castelo todo visível e ficaram as colunas de fora. Mas não tem problema, porque ninguém vai pensar que as colunas são do castelo, vão pensar que são árvores.

-Árvores?

-Árvores sem galhos. Sem folhas. Sabe? Só o tronco.

-E por que o bruxo fez o castelo ficar meio visível?

-O bruxo foi preso no castelo porque tentou tomar o poder do reino. Prenderam ele e ele foi condenado a nunca mais ser visto. Assim ele existe mas é como se não existisse. Um terrível destino para alguém muito malvado, né tio? Ele tentou reverter e fazer o castelo voltar, mas seu poder não deu. Só ficaram as colunas  e ele está lá, mas eu não vejo. Ninguém vê e isso é triste.

-E esse desenho ali?

-É o Gato.

-Que gato?

-O gato da outra dimensão.

-Por isso que ele é assim? Todo rabiscado?

-É que eu não sei desenhar direito as coisas da outra dimensão, tio. Mas lá ele parece um gato direito. Só que ele não mia. Os gatos da outra dimensão só latem. Quem mia lá é o cachorro.

O médico olhou de rabo de olho para os pais. O pai e a mãe abraçados, os dois com olhos cabisbaixos. Deprimidos. O retrato da derrota familiar.

-Irineu, olha aqui esse desenho do tio. O que você está vendo?  – Perguntou o médico mostrando uma folha branca com um quadrado preto no centro.

-Um buraco negro, tio.

-Mas um buraco com essa forma quadrada, Irineu?

-É o buraco negro do outro universo. Ele chupa tudo, chupa todas as estrelas.

-Mas não tem estrela aqui na folha, Irineu.

-É que ele está visto do outro lado. São tantas estrelas que ele chupou que está tudo branco. Elas saem do universo escuro e caem pelo buraco, indo para esse universo branco. É branco de tanta estrela, tio.

-Muito bem… Pode continuar aqui brincando, tá? Vou ali falar com o papai e com a mamãe.

O médico voltou e mal podia encarar os pais.

-Bom, não há duvidas. É mesmo um caso sério de…

A mãe soluçava no ombro do pai.

-O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? – Ela gemia.

-Olha, isso acontece. Agora é bola pra frente. vocês precisam ser fortes para ajudar ele, pobrezinho.

O pai em silêncio, quase omisso. Olhava detidamente cada uma daquelas condecorações, placas e diplomas, como se quisesse fugir dali. Sua vontade era pular da janela. A mãe soluçava desconsolada. O medico continuou.

-Há pais que lidam bem com isso. Eles sofrem, é verdade. Ninguém gosta de saber que tem um filho assim, mas Deus dá a cruz conforme…

-Tem tratamento doutor? – Perguntou o pai de supetão.

-Olha… Infelizmente, quem nasce com a síndrome da hipertrofia do nervo criático não costuma ter muito jeito não.

A mãe chorou mais alto agarrada ao pai.

-Desculpem. Mas vocês sabem… O filho de vocês é portador da… criatividade. – Ele disse, quase sem ar, quase sussurrando a palavra. Foi uma condenação. A mãe aos prantos.

-O que vai ser dele agora Irineu? – Perguntou a mãe ao pai.

-Não sei. Não sei…

-Como isso foi acontecer com a gente? Eu sou vendedor de seguro. Minha esposa é gerente de banco. A gente não lida com isso, não tem nenhum parente na família. -Dizia o pai, mas a mãe interrompeu: – É culpa sua. E aquele seu tio… Ele era pintor, inventor, e sabe lá Deus o que mais? Aquele que a família nunca fala dele!

-Não vem me culpando não. Os genes podem ser seus também!
-Negativo. Nunca consegui nem brincar. Eu só via televisão, Irineu. Você sabe disso, minha mãe te falou. Eu tenho o atestado! Eu ganhei ate medalha na escola! Meu pai era funcionário de cartório!
-Pois atestado eu também tenho! E o meu era escrivão! Nunca inventou uma linha sequer!
-Bom, meus amigos, o fato é que o filho de vocês é criativo. – Interrompeu o médico.

A mãe desatou a chorar novamente. Levou as mãos ao rosto e soluçava, agora desamparada, de costas para o marido. Alheio ao conflito o pequeno Irineu Junior fazia aviões de dobradura com as folhas que o médico lhe dera: -ZZZZZZZAAAAAAAAAAM !  Pápápápá! Vou te derrubar seu malditooooo! Pápápápá! Zzzzzsvshhhhhhh!!!!

-Olhem para o garoto. Talvez ele consiga um emprego, talvez venha a ter uma vida relativamente normal. Já vi casos de crianças criativas que conseguiram viver bem. Se ele arrumar uma mulher bastante paradona, talvez ela segure os impulsos dele…

-Mulher? O senhor me desculpe, mas só pode estar de sacanagem com a nossa cara! Nenhuma mulher normal quer homem criativo. Homem que fica pensando em fazer monstro, em esculpir boneco. Cruz credo. – Diz ela batendo na madeira. – E se… Ai Deus… E se ele virar um escri-escri… escritor? – A mãe recomeça a chorar.

-Acalme-se senhora. – Disse o médico estendendo a caixa de lenços de papel.

-Acalmar? Como? Como?  Olha pra ele, é só um menino. Ele não vê nem televisão. Eu coloco um filme e ele no meio já começa a pular dizendo que é o personagem! Ele não vê novela, nem Malhação! BBB ele nem nunca viu! Ele não pode ir em restaurante que quer desenhar na toalha da mesa. É uma vergonha. Todo mundo olha pra nós com ar de vergonha e reprovação! Eu não sei mais o que fazer. A escola só reclama. Os vizinhos disseram que ele é fora da casinha. O senhor sabe o que é a dor de ouvir que seu filho é “fora da casinha”? Eu não quero filho “fora da casinha”. Eu quero ele na casinha, como foi com meu pai, com a minha mãe, com todo mundo normal. Quem presta está na casinha! Criativos só se fodem, só passam aperto, eu não botei filho no mundo para viver perrengue, viver cliente que cobra mas não paga, cliente que se mete nos trabalhos… Eu não mereço isso, meu Deus!

-Bem, atualmente a Medicina está muito avançada. Existem novos fármacos com promessas de uma vida normal, sem estresses de criatividade. Estão em fases finais de testes na Alemanha.  Talvez ajude. Mas os surtos são para sempre. Claro que ele vai passar o resto da vida tendo ideias e querendo fazer filmes… Talvez ele junte uns amigos e faça uma banda…

-Não… Não! – A mãe tinha os olhos injetados de horror. – Banda não!

-Pode ser pior, senhora. Talvez ele seja o compositor da banda!

A mulher voltou a chorar desesperadamente. Irineu pai a acalmava como podia: – Shhhh! Shhhhhh!
– Sinto muito. Pobre Irineu. – Disse o médico, enquanto olhava o menino escondendo-se do lobo mau alienígena invisível sob a mesinha.

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Olá, Philipe! Quanto tempo, hein?! Acho que a última vez que eu apareci por aqui deve ter quase uns três anos, pois foi pouco antes do meu casamento, e eu já vou fazer três anos de casada. Como estão as coisas? Dia desses eu estava andando na rua quando, do nada, lembrei do seu conto “A Caixa”, aí eu me peguei pensando que a correria do dia-a-dia fez com que eu não voltasse mais aqui. Resolvi procurar seu blog hoje e, para minha alegria, me deparei com esse conto, sensacional como sempre. Confesso que fiquei com pena do pobre Irineu, não por ele ser criativo, mas pela limitação de seus pais. Que sofrimento deve ser viver no meio de pessoas tão limitadas! Vou seguir dando uma vasculhada no blog, tirando a poeira das minhas ideias, e pretendo voltar aqui mais vezes. Abração!

    • Que bom ver você por aqui novamente, Mme! Tem bastante coisa nova, dá uma olhada nos contos. nesse tempo sairam alguns que de um modo ou de outra se conectam na Caixa. “A cadeira Obscura”, “O crânio” e até uns contos curtos, como a “estuprada da baixada”. As coisas estão se interligando.

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