O amiguinho

Sabe como é ter filho. Cedo ou tarde sua casa virará um pandemônio que parecerá um misto de terremoto e tsunami, com brinquedos para todos os lados. É mais ou menos o que acontece comigo, pois eventualmente acabo tropeçando num desses brinquedos. Isso quando não piso num lego. Quem já pisou num lego sabe que dá vontade de chamar o SAMU, mané. Assim, com o tempo, fui ficando mais e mais malandro, para evitar os brinquedos do chão, sobretudo na madrugada.
Eu tenho essa mania de ficar vendo filme toda noite, emburaco madrugada adentro, e lá pelas tantas rola aquela sede cabulosa. Dependendo do que eu como no jantar, acabo indo na cozinha para beber água umas cinco vezes.

Foi o que aconteceu naquele dia. Eu não estava vendo videos neste dia, mas como fazia um calor desgraçado em pleno inverno, bateu aquela sede. Olhei a hora e vi que era por volta de três da manhã. Levantei meio tonto, meio cambaleando. Fui até cozinha. Andei com cuidado no escuro para não pisar em brinquedo nenhum do meu filho.
Então, aconteceu uma coisa curiosa. Ao passar pela sala, eu ouvi uma vozinha engraçada que falou comigo:
-“Quer ser meu amiguinho?”

Puta que pariu, mané. Você não tem noção do que é segurar o cagaço quando uma vozinha fala com você no escuro. mas imediatamente reconheci aquela voz. Era o “amiguinho”. Esse era um brinquedo que meu filho ganhou de uma amiga nossa.

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É uma história trágica e muito pessoal, que não vou dar detalhes aqui por razões de não expor as pessoas, mas tudo que é importante é que esse brinquedo fazia parte dos brinquedos do filho de um amigo nosso, que os pais descobriram que estava com câncer e morreu em poucas semanas. Desolados, os pais se desfizeram dos brinquedinhos. O amiguinho era um palhacinho feio pra caramba que falava algumas frases, mas logo que chegou o Davi tinha muito medo. Mas a gente insistiu. Ele falava umas frases, mas logo pifou. Foi assim que o palhacinho amiguinho veio parar aqui em casa. O Davi nunca deu muita bola para o brinquedinho, que vivia jogado pela casa. Na verdade ele só brincava de dar porrada no tal amiguinho, dizendo que ele era “monstu”.
Pensamos até em doar ele para algum orfanato, mas a gente ficava com pena porque tinha sido presente e tal.

Eis que eu tinha ido beber água e ouvi aquela voz. Passado o susto, pensei: Porra o moleque nunca desliga os brinquedos. Pensei em pegar e desligar, mas o amiguinho estava enfiado no fundo da caixa de brinquedos de modo que eu iria acordar a vizinhança toda se resolvesse chegar nele. Desencanei do amiguinho ligado e fui beber água.
Enquanto bebia água, ouvi o amiguinho, com a pilha fraca, gemendo na sala.

“Quer seu meu…. Amiguiiiinho?.”
Fiquei feliz, porque aquela merda ia finalmente calar a boca.
Voltei pra cama. Ao passar, esperei pra ver e o amiguinho só emitiu um chiadinho baixo.

Deitei na cama e peguei no sono em segundos. Acordei mais ou menos uma hora depois, quase fazendo xixi na cama. Corri para o banheiro e enquanto passei perto da sala, lá veio a vozinha:

“Quer ser meu amiguinho?” – O maldito brinquedo parecia ter recuperado a energia. Calculei que a bateria devia estar nas últimas, porque logo depois ele repetiu o “Quer ser meu amiguinhoooooo” com a voz bizarra de quem estava ficando sem energia. Certamente a pilha tinha acumulado alguma voltagem no tempo em que fiquei dormindo.

Mas eu esperava que o amiguinho ficasse quieto. Só que ele não ficou. Repetiu sem parar com aquela voz eletrônica de baixa freqüência o bordão. Aí eu pensei seriamente em ir lá e desligar aquela bosta, mas a preguiça e o sono falaram mais alto. Cheguei na sala.

“Queeer seeeer meu amiguinho?” – A energia estava baleiando, cada hora o boneco falava com uma voz. Mas algo certamente estava errado, porque boneco tinha um sensor que só falava aquilo quando apertava um botão no peito dele. Certamente o meu filho devia ter deixado algum brinquedo pressionando aquele botão.
Agora o Amiguinho só dizia, com a voz cava, e até gutural: “Quer ser meu? Quer ser meeeeu?”

Então aconteceu outra coisa curiosa. Eu disse -“Não, não quero. Cala a boca, porra!”

Que ridículo, eu um adulto de quarenta anos na fuça falando com um brinquedo.

Mas um arrepio me acertou a espinha quando assim que respondi o brinquedo parou de falar. Voltei pra cama pensando em como podem ser doidas as coincidências dessa vida.

Deitei, mas já não conseguia mais dormir. Maldita adrenalina do caralho. Lá fora a noite estava em completo silêncio. Um silêncio que me oprimia o peito. Senti um estranha angústia me dominando. Não é possível. Síndrome do pânico do nada?

Fechei os olhos, pensei em coisa boa, mas a vozinha não saía mais da minha cabeça. Eu não tinha mais posição, nem sossego. A coisa desandou de vez quando meu filho deu uma gargalhada dormindo. Quase caguei ali mesmo de medo.

Levantei. Não dava. Não dava para ter aquela coisa ligada na sala.
Acendi a luz da sala e fui até lá. Comecei a escavar os brinquedos da sala. Bola, carrinhos, robô, bonecos e mais bonecos. Jogo de memória, fazendinha, soldadinhos, nada de chegar no amiguinho. Finalmente o encontrei debaixo de um urso de pelúcia, que estava sendo esmagado pela sanfona.
Tirei o urso e o amiguinho falou pela última vez com a voz gutural:

“Queeeer seeer meeeu…?”

Para minha surpresa, vi que o botão estava em off. Logico que o Davi quebrou a porra do amiguinho. Essa maldita mania de jogar brinquedo pra cima. Ô fase desgraçada! Isso explicava também a voz sair do amiguinho sem ter o botão do peito pressionado.
Fui ao escritório. Resolvi tirar as baterias. Peguei a chave de fenda na bancada e tirei o parafusinho. Deslizei o botão com cuidado para o plec não fazer barulho e não acordar ninguém.

PLEC!

Não tinha nenhuma bateria no amiguinho.

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Aaaaaaaaah! Muito bom!

    Ainda bem que li agora, durante o dia…eheh!
    Isso me lembrou que, quando eu era criança, acreditava que os brinquedos ganhavam vida durante a noite. Acho que é uma fantasia de muitas crianças.

  2. Se essa historia for real, cara, na boa, essa noite minha filha perde uns 3 brinquedos. desde pequeno sempre tive cagaços de bonecos que falam essas frases gravadas, imagina, altas da madruga, se dando aquela mijada, e um bonequinho de PALHAÇO, que foi de uma criança que infelizmente morreu, pede pra ser seu amiguinho? e pior sem pilha, juro que queimaria o brinquedo sem pensar duas vezes.

  3. Medo do amiguinho!!! Se isso acontecesse comigo eu ia morrer do coração, já aconteceram coisas estranhas comigo mais nada no meio da madrugada com o boneco falando sem bateria!!

    E o amiguinho ainda está com vc?

  4. Caramba! Achei que essa era mais uma de suas histórias gump com o sobrenatural. Eu tenho bastante curiosidade sobre o assunto, adoro essas histórias e gostaria que você pusesse mais desse conteúdo aqui. Enfim, parabéns pelo trabalho!

    • Esse é um conto, mas é baseado em fatos reais. Eu realmente ouvi um dos brinquedos do meu filho que começou a falar do nada e com base no susto que me deu pensei no resto da história.

      • Também já aconteceu comigo. E realmente dá um baita susto aquela voz saindo da caixa de brinquedos no meio da madrugada, do nada…

  5. Conto ou não, essa também me lembrou de uma. Minhas primas tinham uma boneca que falava e elas, como todas as meninas, também eram chegadas à uma maquiagem, meninas gostam de imitar os adultos se pintando ( maqiando ) , só que elas praticavam na boneca. Imagina a cara de monstro que era aquele troço. A gente morria de medo e quando ia passear na casa delas fica torcendo pra não ter que pozar (dormir) por lá. Elas moravam em outra cidade.
    Kkkk!

  6. Porra eu não vi que era “conto”! Que inferno.
    …por ser um palhacinho tendo pilha ou não eu enfiava-o no micro-ondas em potencia máxima até derreter tudo!

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