Licantropus

Mais um conto sanduíche pra encher a linguiça do leitor gumper:

LICANTROPUS

Naquele tempo eu era coveiro. Estava limpando uma sepultura quando escutei o primeiro uivo.
Quando deu o segundo eu já estava correndo a toda velocidade que podia para casa.
Já estava escuro e eu tenho essa mania de ficar depois que escurece até terminar o trabalho. Mas como eu não sou trouxa, ao ouvir o primeiro uivo eu corro. Mesmo sabendo que ele vai destruir as sepulturas pra buscar a carne humana, eu prefiro correr a enfrentar o bicho.
Bicho do mal.
Os lobisomens atacam tão logo escurece. E não tem essa conversa fiada de lua cheia não. Já deu lobisomem aqui em noite com e sem lua. Mas é sempre de noite.
Eu corri e me escondi onde deu. Era um mausoléu. Não deu tempo de chegar em casa. Eu ouvi as patas do bicho escalando o muro.
E ali estava eu. Escondido, prendendo a respiração pra “coisa” não ouvir.
Fez um silêncio. Um silêncio que durou vários minutos. Deu até vontade de sair. Mas eu não saí.
Não saí porque eu sabia que ele sabia que eu pensava que ele tinha ido embora… Confuso eu?
Eu fiquei foi quietinho, abaixadinho atrás da caixa de mármore, perto da grade do mausoléu.
Por sorte estava aberto. Faziam anos que os parentes não vinham e eu passei a guardar as vassouras e pás ali. O defunto mesmo nunca reclamou, coitado.

Daí o bicho uivou novamente lá fora e eu tremi igual a uma vara verde.

Ele estava lá. Bem perto. Eu podia ouvir os estalinhos das patas do monstro batendo no cimento. Cheirava sepulturas em busca do cheiro do sangue.
Diz a lenda que quem vira lobisomem, se ficar sem comer carne humana por dez anos, deixa de ser. Mas esse aí? Ah… Esse aí gosta é dum bifinho de gente. E do mal passado.
Olha, pouca gente sabe. Quem me contou foi o velho Tião.
O Tião era o coveiro aqui antes do meu pai. O bicho uma noite matou o Tião. Pegou ele pelo pescoço e estraçalhou o velho. A gente fica velho e não consegue correr…
Hã? Ah, é. Eu ia contar. O Tião uma vez falou pra mim e pro meu finado pai que a metamorfose é castigo. Ele sabia bem, porque o irmão dele, diziam que virou lobisomem também. Tião falava que era mentira. Papo que o povo conta, mas eu bem que ouvi na venda que o Genival e os Alvarenga mataram o bicho, que pegava as pessoas que voltavam na estrada.
Mas, que seja. O Tião falou que o bicho é igual a uma pessoa. Bem, igual é exagero da parte desse seu amigo aqui.
O bicho na verdade mesmo é uma criatura com altura maior que uma pessoa, com orelhas grandes que batem no rítimo da carreira.
O lobisomem é o sétimo filho de uma mulher. Se uma mulher tem sete filhos machos, o sétimo não dá outra. É “pá-pum”! Lobisomem na cabeça.

Diz que lobisomem é o “dízimo do diabo“.
E tem outra, o homem que é de tornar lobizomem, pode se ver na pele. Quando tá na forma humana. É sempre um sujeito meio pálido, meio triste, assim, amarelo, sabe? Um sujeito fraco, quase tísico.

Conta que esse aí, – esse que tá lá fora abrindo a sepultura de alguém pra comer, – é o velho Simão Goldim.

Ninguém teve coragem de bater na casa do Simão de noite pra ver se ele está lá, mas o povo jura que é ele, porque o Simão é tuberculoso e não morre. O povo acha os caroços e os coágulos sangrentos em volta da cabana dele, mas ele não morre. Tá assim faz mais de dez anos. Ele não morre sabe por que? Porquê quando vira o bicho, ele bebe o sangue dos mortos.
Os fazendeiros dizem que o velho Simão Goldim vomita o excesso do sangue que bebe dos defuntos.

Um sujeito ainda pode virar num lobisomem mesmo não sendo o sétimo varão.
Pra virar? Ah, pra virar o Tião sempre dizia que o lobisomem não bebe líquido enfeitiçado, não aperta a cintura com cinto mágico nem fala palavra ou faz sinal demoníaco. O jeito é outro.
A única lenda sabida para alguém virar lobisomem é o seguinte:
È na noite de quinta para sexta, numa encruzilhada o homem fica nú e dá sete nós na roupa e em alguns lugares urina em cima. Daí ele deita-se por cima da roupa e dobra os joelhos o mais que puder. Os braços estica para frente, ou então fica apoiado nos cotovelos. Aí o homem pula, girando o corpo no ar da esquerda para a direita enquanto solta um grito o mais alto que pode imitando o lobisomem no rosnado do animal. E ergue-se a criatura onde estava o homem, saindo de dentro deste. Ela sai em desabalada carreira, batendo as orelhas pontudas rilhando a dentuça enorme em gritos e uivos iguais ao do maaior dos lobos.

A criatura vai correr das onze as duas da madrugada, na busca de sua presa. O primeiro cantar do galo faz o monstro voltar à forma humana, correndo para o lugar em que se transformou, onde salta novamente, desta vez da direita para a esquerda. Mas se alguém, enquanto o homem está transfigurado na besta lhe desfizer os nós da roupa, nunca mais o lobisomem volta a ser homem, ficando eternamente na forma da criatura.
O lobisomem é invulnerável ao tiro. E ao corte… – Se bem que não há notícia de quem tentara cortá-lo por causa da coragem necessária a tal proeza.

Mas há um jeito e matar o bicho e é usando uma bala metida em cera de vela do altar onde haja celebrado três missas da noite de natal. Se por ventura alguém cortar a criatura com espada ou foice, o diabo vem para beber o sangue e o encanto se desfaz. Mas ninguém chega perto de uma coisa assim em sã consciência.
Na falta de um vivo o bicho apela para o cemitério, onde cava a terra como o cão e busca os restos humanos. É comum logo depois de enterros, quando o cheiro do morto ele identifica no ar.
E foi o que aconteceu há dois dias atrás. Seu Nô da rua quinze morreu. Agora tá lá na boca do bicho dos infernos. Tenho pena da família… E de mim, que vou ter que limpar a nojeira dos pedaços de ossos, carnes e tripas espalhados pelo cemitério.
Amanhã de manhã, tão logo o primeiro raio de sol entre pela fresta aqui eu saio e começo a limpar. Do mesmo jeito que fez meu finado pai e fez o velho Tião a vida toda.
Boa noite.

FIM

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

    • Porque quando os mitos vieram pra cá, com os colonizadores não chegaram num local deserto, pelo contrario, as lendas europeias se somaram a um prolífico universo de lendas, histórias e mitos indígenas. Com a vinda dos escravos da áfrica as lendas ganharam novas dimensões, se mesclando de maneira única. Por isso que as lendas brasileiras são tantas, e tão legais. Somos um celeiro infinito da biodiversidade, mas também da diversidade mítica. É pena que os escritores e cineastas brasileiros explorem tão pouco esta fonte quase infinita de idéias.

  1. cara se esse bixo aparecece pra mim eu saia vuado mew eu nem olharia pra tras, eu ia perde +/- uns 5kg só de corrida mew acho q eu ia da bahia até SP pra esse bicho n me pega

  2.  Bom, segundo meu avô meu bisavô fugiu de um lobisomem, utilizando apenas de um facão para se defender.
    Segundo ele, naquela época quando era necessário viajar de uma cidade para outra, ou grandes distâncias, eles saíam de madrugada, e foi em uma dessas viagens que ele encontrou o bicho, meu bisavô andava com um facão e fugiu com o bicho perseguindo ele, quando a criatura se aproximava, meu bisavô ameaçava ele com o facão e ela recuava por um tempo, até que a manhã estava chegando e um galo cantou, então o lobisomem tomou outro rumo.
    Meu avô conta várias histórias, desde vizinhos cujo as esposas tinham sete filhas e o próximo filho (esse seria o lobisomem) que segundo ele depois de um tempo incomodavam a vizinhança (sumiam galinhas, e outras criações, sendo atribuídas a presença de um lobisomem), ou até mesmo da infância dele (principalmente uma vez em que ele e os irmãos e o pai dele enfrentaram um, próximo à chacara onde moravam, e segundo ele a criatura matou dois dos três cachorros que eles possuíam).
    Gosto muito das histórias dele (não apenas sobre lobisomens), não posso afirmar que são todas verdadeiras, afinal não presenciei nenhuma, mas de qualquer modo são fascinantes, principalmente pelos detalhes, como a postura, sons e outras características da criatura.
    Desculpe pela minha grafia, digamos que não é o meu forte.

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