As crianças da noite – Parte 22

Aesh Pandraj estava deitado, mas não conseguia dormir. Algo lhe parecia estranho, estava incomodado. Talvez fosse a Tv.

Desligou a Tv, virou-se na cama em direção à parede e tentou dormir. Mas era um incômodo, uma coisa ruim. Uma sensação que ele conhecia bem, pois havia sentido outras vezes.

Levantou, foi até a cozinha, bebeu dois copos de água. Olhou as horas. O relógio marcava quase três horas da manhã. Estava com um amargor na boca… Escovou os dentes pela terceira vez, mas o amargor não sumia.

Aesh voltou na cozinha. A sede o consumia.

Bebeu mais um copo de água gelada. Apagou a luz e voltou para o quarto. Ele cruzava a sala da casa quando notou uma luz azulada brilhando no quarto.

“Estranho, eu desliguei a Tv…” – Pensou.

À medida em que se aproximava do quarto, a luz azulada ia se tornando mais e mais forte. Até que ao chegar junto a porta, Aesh viu uma bola de energia resplandescente brilhando no meio do quarto. Iluminava o guarda-roupa e o quarto todo. A Luz foi ficando mais intensa até se tornar insuportável olhar para ela, como um arco voltaico de solda. Aesh virou seu rosto e então tudo se apagou. Ele tentou enxergar, mas agora estava muito escuro.

-Aesh?  – Era a voz de Leonard.

-Leonard? É o senhor?  Não consigo ver.

-Desculpe, meu amigo. Eu não pretendia chegar assim, sem avisar… Está me vendo? Oi!

-O que houve? Já consigo vê-lo, sim senhor.

-Tive um, digamos, contratempo.

-Contratempo? E o senhor Rogério?

-Pois é. Este foi o contratempo. Ele morreu.

-Hã?

-Exatamente. Fizemos a evocação da Marenka, mandei ela soltar a mulher do rapaz, mas a maldita me passou para trás. Alegou que não ofertei sangue suficiente. Ela matou uma pá de gente no hotel e picou a mula.

-Mas… Ele morreu mesmo?

-Ele não aguentou o tanto de sangue. Eu tenho a impressão que a Marenka sabia que esse era um desfecho possível ao exigir os sete cálices.

-Desgraçada… Mas e agora?  E o corpo do rapaz?

-Bom, no caso dele, deixei a navalha do lado, vai parecer um suicídio. Mas complicado mesmo é que ela matou dois policiais que estavam de tocaia no hotel, esperando para grampear ele.

-Puts!

-Não obstante, ela ainda matou o gerente e alguns homens da brigada de incêndio, coitados. Não tinham nada a ver com o pato.

-Brigada ? Teve incêndio? – Perguntou Aesh Pandraj.

-Bem… Mais ou menos. Foi uma confusão, o alarme de incêndio disparou.

-Nossa! E agora? O que iremos fazer, Senhor Leonard?

-Bom, a primeira coisa que pensei é que eu precisava dar o fora daquele lugar antes que mais polícia chegasse. Aí pensei em dormir aqui com você.

-Aqui?

-Ora… Não vai negar uma pousada a um velho amigo, não é, Aesh?

-Claro que não, senhor Leonard. Perdoe o mal jeito. É que eu fiquei surpreso do senhor, alguém tão importante aqui na minha casinha… Sou pobre, o senhor sabe. Não posso lhe oferecer luxo.

-Amigo Aesh… Se eu quisesse luxo, eu teria aparecido na suíte de algum castelo da Bavária. Só preciso de um lençol e um pedaço de espuma.

-Não se preocupe, senhor Leonard… Temos tudo aqui. Deixa que eu vou arrumar uma caminha para o senhor aqui no chão. Se importa?

-Manda bala, meu amigo!

-Se o senhor quiser tomar um banho.

-Ah, sim, seria uma boa.

-Aqui está a toalha. O banheiro é ali…

-Eu sei onde é.

-Ah, sim, é que eu me esqueço que o senhor já veio aqui em casa. Faz o que? Uns cinco, seis anos, né?

-Por aí! E seu irmão?

-Ainda na mesma. Mas pelo menos está vivo.

-Um dia ele vai voltar, Aesh. Eu tenho certeza.

-Espero que sim, senhor Leonard. O resto da família se agarra nessa esperança.

Leonard entrou no banheiro. Aesh arrumou uma cama no chão, usando um edredon como colchão.

Minutos depois, o velho Leonard saía do banheiro.

-Nossa, ficou bacana!

-Não repare, senhor Leonard.

-Que isso, meu amigo! Está ótimo. Vamos deitar que amanhã teremos um dia animado.

-Animado?

-Sim, animado, ué. Você quer um dia desanimado?

-Bem… Animado o senhor quer dizer… Igual a hoje?

-Não… Hoje foi meio monótono.  -Disse Leonard, já no escuro. Então, ele se virou e começou a roncar quase imediatamente. Parecia uma motosserra de tão alto que ele roncava.

Aesh Pandraj não dormiu.

….

Quando Leonard abriu os olhos, já era tarde.  Ele se espreguiçou e perguntou as horas para o indiano. Mas não obteve resposta. Só então Leonard percebeu que ele não estava lá.

-Aesh? Aesh?  – Leonard perguntou, mas não teve resposta.

Leonard levantou-se colocou uma camisa por cima da cueca e foi até a sala. Aesh estava na cozinha, coando o café. O cheiro bom do café inundou o ambiente.

-Bom dia, Aesh. Dormiu bem?  – Perguntou Leonard.

-Bem… A verdade é que eu passei em claro.

-Ah… Perdão. Eu lhe incomodei? É que eu ronco um pouco…

-Não, não. Tudo bem. Não é isso. Fiquei pensando no senhor Rogério. Era um bom homem. Ele não merecia… O senhor sabe.

-É verdade. Pobre rapaz. Jovem e rico… Fez de tudo para ter a mulher de volta. Deu a vida por ela…

Aesh colocou o café na xícara.

-Ops, só um minuto, tenho que me vestir e escovar os dentes. – Disse Leonard, correndo para o banheiro.

Enquanto arrumava a mesa do café, Aesh se lembrava de Rogério e refazia mentalmente todas as informações da velha/menina.

Algum tempo depois, Leonard chegou. Aesh já estava tomando o café.

 

Os dois tomaram café em silêncio. Passaram-se um, dois, vários minutos e nenhum dos dois dizia nada. Foi Aesh Pandraj que interrompeu o silêncio.

-Quando começa a “animação”, senhor?

Leonard olhou para o indiano de turbante. Coçou o queixo, deu uma golada no café quente e respondeu: – Eu vou precisar de um favor.

-Estou às ordens, senhor.

-Mas esse é dos grandes.

-Pois não. Diga.

-Preciso que você me enterre.

Aesh quase cuspiu o café: – O quê?? Tá louco? Enterrar? vivo?

-Não. Morto mesmo.

-O-o-o senhor não tá pensando em…

-Calma. Calma. É isso mesmo.  Acabando o café, nós vamos pegar um táxi. Não o seu, porque seu carro tá lá todo melecado perto do hotel. Vamos pegar um outro. Eu pagarei seu dia de trabalho. Não se preocupe. Nós vamos até um lugar. Esse lugar é especial é ali onde a “animação” vai acontecer.

-Sim senhor… – Disse Aesh. Leonard notou que ele tremia para segurar a xícara. Leonard sorriu por dentro, pois se Aesh Pandraj soubesse realmente o que esperava os dois, estaria agora tremendo com magnitude 8 na escala Richter.

 

Algum tempo depois, Leonard e Aesh Pandraj estavam acabando se se arrumar para sair. Leonard vestiu o Paletó. Aesh arrumava os fios do bigode num espelho lascado quando Leonard o chamou.

-Lembra disso? – Disse ele mostrando Kuran. Kuran era um punhal cravejado de pedras preciosas.

Aesh olhou demoradamente para a arma.

-Eu já havia me esquecido de como ela era linda…

Leonard guardou-a no bolso oculto do paletó tweed surrado.

Vamos?

Sim senhor.

Antes de saírem, Leonard perguntou: – Aesh, você não teria por acaso uma pá?

-Uma pá? Do tipo pá de obra?

-É! Pra você me enterrar!

-Eu… Não… Mas na obra aqui do lado tem.  -Disse o indiano, apontando uma casa em construção.

Leonard saiu pela porta e saudou o sol, que já descia bem forte do céu.  Ele deu alguns passos até a porta da casa em obras e bateu algumas vezes.

Minutos depois, surgiu um sujeito negro, todo sujo de cimento: – Pois não?

-Quer vender a pá companheiro?

-O que? Vender o que?

-Eu tô precisando de uma pá, igual a essa ali, ó. A encostada ali na parede. Não estou com tempo de ir na loja, mas veja… Tenho um dindim aqui e…

-Vendido! – Disse o sujeito, agarrando as três notas altas.

O homem entrou, foi até a parede, pegou a pá, toda suja de cimento e entregou ao Leonard.

-Viu Aesh? Nada como ter bons vizinhos.

-Sim senhor… E uma ajudinha do capital, não é?

-Leonard sorriu, balançando a cabeça assertivamente.

Os dois foram até a esquina e pegaram um taxi.

-Pra onde? – Perguntou o motorista.

-Para a entrada da cidade.

-Qual delas, senhor?

-A antiga.

-Sim senhor.  -Disse o sujeito com sotaque russo.  Ele acelerou o carro e os três ocupantes sumiram no rastro de fumaça que o veículo lançou.

Algum tempo depois, eles chegavam à estrada que dava acesso a entrada antiga da cidade.

-Vão ficar aqui? – Se espantou o motorista.

-Sim senhor. Aqui está. Pode ficar com o troco.

-Olha, eu sei que não é da minha conta, mas… Esse lugar é cheio de maloqueiro! Cuidado que tem uma cracolândia aqui perto e…

-Pode deixar, senhor.  -Respondeu Leonard, batendo a porta do carro.

-Tenha um bom dia, Vasiliev! – Gritou Aesh. O taxi já ia andando apressado quando a mão peluda de Vasiliev surgiu na janela dando um tchauzinho discreto.

Agora os dois estavam sozinhos perto de uma floresta.

-E então? – Perguntou Aesh.

-Tá… Vem por aqui. – Disse Leonard, saltando o guardrail e entrando na floresta.

Os dois andaram quase vinte minutos no meio das árvores, até chegarem a umas pedras grandes. Blocos enormes de granito fragmentado no meio da floresta.

Havia um tenebroso silêncio e não se ouvia nenhum pássaro ali.

-Aqui está bom. -Disse Leonard, olhando em volta.

-Bom? Pra mim tá igual a todos os lugares que passamos desde a estrada lá em cima…

-Não, não. O importante é que o que vamos fazer não pode ter testemunhas. Vamos começar.

-Tudo bem. O senhor que sabe. O que eu faço?

-Toma. Pega esse saquinho. -Disse Leonard entregando um saquinho de pano ao motorista indiano.

-Que isso?

-Sal.

-Sal?

-É! Sal grosso. Tipo de churrasco. Roubei na tua cozinha quando você lavava a louça do café.

-E vou fazer o que com isso?

-Vai jogar em cima de mim, depois que me enterrar.

-O senhor tem certeza? Eu acho isso perigoso.

-Calma. Desde que você siga o que eu vou dizer, é seguro pra você.

-Mas e para o senhor?

-Bom, apenas concentre nas minhas ordens, ok? Ouviu?

-Tudo bem.

-Pode começar a cavar!

-Aqui?

-É, rapaz! Cava aí, sô!

-Tudo bem! – Disse Aesh.

Então durante quase uma hora, Aesh Pandraj cavou um enorme buraco, removendo pedras de todos os tamanhos.  Quando finalmente o buraco tinha cerca de um metro de profundidade, Leonard deitou-se nele para verificar o tamanho.

-Está perfeito! – Disse Leonard, se ajustando no buraco.

-E agora? -Perguntou o Indiano limpando o suor da testa. Já era quase meio dia, o calor estava escaldante.

-Agora nada. Eu vou dizer umas coisas. Não me interrompa. Ande até aquela pedra grande, conte até cem e volte. Eu vou estar morto. Você não deve me tocar, sob hipótese nenhuma. Do contrário, você morre. Entendeu?

-Sim.

-Então repete.

-Eu não devo tocar o senhor.

-Senão o que?

-Senão eu morrerei.

-Isso mesmo, Aesh! Eu vou estar morto. Mortinho da silva. Defunto! Um presunto. Na terra do pé junto! Vou estar comendo o capim pela rai…

-Eu entendi, senhor.

-Aí você vem e me enterra. Enterra completamente. Depois joga todo este sal em cima da terra. Conte até vinte e bata palmas três vezes.  Aí é só esperar.

-Mas esperar o que? -Perguntou Aesh, curioso.

-Você vai ver! -Disse Leonard sorrindo daquele jeito estranho. -Pode ir. Tá esperando o que? Tá querendo alguma coisa? Um beijinho de despedida?

Aesh se virou e andou até a pedra. Começou a contar.

Leonard sentou-se na sepultura. Fechou os olhos e recitou as palavras que já não falava fazia quase vinte anos.

Quando Aesh Pandraj chegou ao túmulo, encontrou Leonard deitado de bruços. Estava morto. Aesh ficou alguns minutos observando. Ele não respirava. Estava morto.

-Droga… Agora só falta eu!  -Ele disse em voz alta. E então começou a enterrar o corpo de Leonard.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Pronto, não durmo mais de ansiedade, sério Philipe, se você lança um box de livros com todas as histórias do Leonard, não penso duas vezes antes de comprar.

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