A busca pelo Raiden 2

Havia se passado quase uma semana desde que eu liguei insistentemente para o Fininho em busca de alguma resposta para o telefonema bizarro. Mas sempre ouvi a mesma desculpa, que ele tinha viajado. Talvez fosse verdade, afinal, Fininho trabalhava nisso. Gradualmente meus afazeres diários começaram a atrapalhar meu interesse no caso do Raiden. Gradualmente fui me esquecendo do assunto e já não pensava mais nisso. Então aconteceu uma porra duma reviravolta inesperada.

Eu tinha recebido um convite para uma vernissage dum cara que namorou uma prima minha. Eu nunca entendi aquele namoro, porque sempre imaginei que gays namorassem homens. Mas minha prima Lucrécia parecia alheia a este fato. Talvez por ela ter três mamilos, (sério, mas ninguém podia falar isso na família que era tabu) ou pela perna mecânica, ou quem sabe, a idade (dizem as más línguas que as pessoas pensam que ela é a vó dele)… O fato é que Lucrécia era gamada no tal do Fabiano Visconti a ponto de bancar todos os luxos dele. Mas não se engane, não é golpe do baú.

Fabiano é herdeiro de uma das maiores construtoras do país, com negócios em três continentes e mais de trinta países, ele é o que chamamos popularmente de um “cara podre de rico”. Ele despreza a própria família, embora viva de uma mesada que recebe da Fundação Pablo Visconti. Essa mesada é, como qualquer um poderia supor, dinheiro que não acaba mais.
Fabiano vive sua vida de excessos, embebedando-se com Absinto de noite, pintando de dia e vivendo o restante para Lucrécia e seus seis poodles cujos nomes são impossíveis de decorar, mas sei que são os nomes dos filhos do Czar da Russia, Nicolau II. O Rasputin, o único que me lembro, era o poodle toy marrom, o mais velho. Rasputin morreu ano passado e foi empalhado. Meses atrás, Lucrécia inaugurou na ilha deles em Angra dos Reis, uma estátua de bronze de Rasputin.

Mas de volta ao Fabiano, pensa num cara afetado. Fabiano é pior. Fabiano dava gritinhos, saltitava como uma libélula e uma vez desmaiou de emoção em pleno museu do Louvre ao se deparar com uma pintura renascentista que não conhecia.
Nunca fomos amigos, mas sempre tivemos uma relação cordial, porque a Lucrécia gosta muito de mim. Diz que sou o primo preferido dela. Sendo assim, o Fabiano me suporta, embora faça uma indefectível cara de nojo para minhas roupas compradas na C&A. Mas eu levo numa boa, até porque Fabiano faz cara de nojo para qualquer roupa que não seja assinada por alfaiates milaneses.

Então lá estava eu, adentrando o suntuoso museu. Era fácil encontrar lucrécia. Bastava seguir os flashes dos paparazzi (eles adoravam a dupla) ou os latidos esganiçados dos filhotes do Czar.
Me aproximei deles. Fabiano ostentava um belo bigodão preto como a asa da graúna. Certamente devia estar pintando o bigode. As pontas eram reviradas para cima, não como os do Salvador Dali, mas num estilo ligeiramente vitoriano. Ele vestia um terno de riscas de giz perfeitamente cortado, que deixava transparecer sua blusa com babados franceses retrô. Algo que só foi bonito por volta do século XVI, eu acho.

Um garçom se aproximou e me ofereceu (falando em francês – aliás, que babaquice idiota isso em pleno Rio de Janeiro) um flute de champanhe da melhor qualidade.
Peguei a taça e flanei semi-invisível entre os convidados. Havia na vernissage uma pequena multidão de ricos esnobes, políticos e todas essas pessoas que estão ali para comprar e lavar dinheiro com pintura de qualidade duvidosa e valor alto. Os demais, eram os figurantes de sempre: as alpinistas de coluna social, as pessoas que orbitavam os ricos tentando angariar doações para ongs e causas diversas, jornalistas de tablóides e revistas “celebs”, jornalistas especializados em arte internacionais, as modelos de ficha rosa e também as modelos comuns, sem falar nas celebridades recebendo uma nota para abrilhantar o evento com suas presenças vip.

Parei ao lado de uma moça linda e esguia, enfiada num microvestido preto e saltos altos de sola vermelha (caros). Era uma mulher de parar o trânsito, que eu já tinha visto numa novela, mas não sabia o nome porque não vejo essas bostas desde que passava Roque Santeiro na TV. Ela aparecia em comerciais. Estava de braços cruzados, segurando a taça de champanhe, completamente absorvida pela pintura.

Fiquei ali ao lado dela. Nos entreolhamos por um segundo e ela fez um discreto cumprimento com a cabeça. Eu respondi na mesma toada. Ficamos ali diante da imensidão daquele quadro. Na tela, um caralho pintado de azul. Sim, um pênis. Um falo de dois metros e meio. Ereto, veiúdo, a glande repuxada exibindo uma cabeça avermelhada que lembrava quase um cogumelo ao sol. Notei que a pica de proporções titânicas era meio torta, enviesada. Fiquei pensando no meu pau. Eu tinha um pau reto, mas deve ser uma merda ter pau torto… Então a moça ao meu lado, compenetrada diante de tamanha magnificência caralhal sussurrou:
– Fascinante. -Falou sem tirar os olhos da piroca.
– Sim… -Eu gemi meu engasgado, porque não sabia o que dizer diante duma piroca maior que eu. Estava claro pra mim que Fabiano Visconti havia passado sua fase verde. Estava na azul, ainda pintando caralhos duros. Mas esse ano, havia uma estranha novidade. Uma serie de retratos e essa era a “bomba” nas artes plasticas. Fabiano Visconti havia deixado os caralhos para trás. O último caralho era aquela mastodôntica piroca azul turquesa, ereta como um obelisco torto.
Visconti agora pintava pessoas. E para meu completo espanto, pintava muito bem. Muito melhor que pirocas verdes e azuis que haviam consagrado seu nome entre colecionadores mundiais. Voltei-me para a sílfide ao meu lado.

-Você já passou pelos retratos?
-Não, estou esperando a multidão abrir um espaço lá dentro. – Ela disse, ainda sem olhar pra mim. Olhava para… você sabe. É difícil não olhar.
-Eu também não. Ta lotado la dentro.
-O Pelé veio.
-Sério? Até o Pelé?
-Sério. Veio todo mundo. – Ela disse sorrindo. Finalmente olhava pra mim. Os olhos dela eram esferas azuis como cristal. A boca perfeitamente desenhada com batom vermelho. O olhar era luminoso, energético. Foi uma fração de segundo que durou aquele olhar, mas confesso abertamente que imaginei naufragar naqueles braços e me embrenhar com ela noite adentro na mais profunda volúpia.

Eu ia dizer mais alguma coisa, precisava pensar rápido ou perderia a janela da oportunidade. Mas deu merda. Uma mão ossuda e forte me agarrou pelo braço. Imediatamente me virei e dei de cara com a prima Lucrécia. A boca murcha e flácida lembrava um palhaço de circo. O vestido era uma marmota de bolinhas, meio apertado, que lembrava a capa de um botijão de gás. Ela estava usando um chapéu amarelo enorme que lembrava ate um sombreiro. No pescoço, colares estranhos comprados em alguma feira de antiguidades da Europa, certamente. Os cachorros vieram me cheirar.

-Aqui está o meu primo preferido! – Ela berrou pra exposição inteira ouvir, com sua voz esganiçada e espalhafatosa. Pelo menos esse ano ela estava usando brincos de pérolas e não diamantes. A propósito, Rasputin morreu engasgado com um diamante.

Me senti bombardeado por dezenas de olhares inquisidores. Certamente alguém ali devia estar pensando se eu já tinha comido a velha perneta, mulher do pederasta pintor de falos.
Notei a ninfa saindo de fininho. Mas não havia jeito de me desvencilhar da saudosa prima. Fiz aquele misancene de sempre, perguntei dos cachorros (ai de quem não pergunta, ta fodido!) perguntei das viagens, das pinturas e finalmente perguntei como estava o Fabiano. Ela então me puxou pelo braço:

-Fabianoooo! Olha quem chegou! – Ela berrava.

Os flashes então se voltaram para mim e tivemos que fazer mais de dez fotos brindando diante da pintura duma negra com um leque que era de fato uma das melhores pinturas que Fabiano Visconti já havia feito em sua vida. Era a “jóia da coroa” naquela Vernissage. O enorme papel ao lado ostentava um “vendido” em letras garrafais com negrito. Faça ideia da fábula que aquilo devia ter custado.
Fabiano me abraçou falsamente como sempre, me deu dois beijos no rosto e perguntou como eu estava. Se queixou que eu não fui no aniversário dele naquele hotel da Costa Amalfitana.
Dei a desculpa que sempre colava – e que era verdade: Eu não tive grana.
-Por que não falou? Eu mandava o jatinho te buscar, Gui! Ele disse, limpando com cuidado os bigodes molhados pelo champanhe.

Fabiano me fez prometer que iria em seu próximo aniversário. Eu o congratulei pela exposição e trocamos uma ideia rapidamente sobre as pinturas.

-Mas você mudou o estilo? – Perguntei, sem saber que aquilo iria ofendê-lo profundamente. (eu soube depois pela prima que me ligou pra reclamar da pergunta. Segundo disse, ele até… Chorou. Duvido. Certamente era um exagero de Lucrécia, pra dar um drama na parada.)

Seja como for, se o afetou, ele é bom ator, pois na hora não parecia ter afetado nada. Ele respondeu que havia chegado ao fim de um ciclo e um novo estava se abrindo, e que havia um mundo novo a descortinar atrás dos falos conceituais. E discorreu brevemente por referências a tribos primitivas que cultuam gigantescos falos escupidos em troncos de árvore ou pedras, e pintores da década de 60 que eu desconhecia. Ele mijou sua arrogância artística sobre minha cabeça diante do olhar atento e orgulhoso da prima Lucrécia.
Apontou então seu enojado dedo mindinho no meu paletó de veludo e questionou:

-Sabe quem é essa, Gui?
Olhei para a pintura. Era uma belíssima obra de uma mulher negra com um turbante azul e um leque de renda. Mas claro, eu não sabia.
-Não sei.
-Lorena Gutierrez. Ela é prostituta num bordel em Cuba. Vive com menos de um dólar ao dia.
-Nossa.
-E aquele ali outro… Aquele homem sentado num café de Montmartre é Christian Friedrich Seybold.
-Aquele ali? Com o café?
-Sim. Ele é um filólogo alemão e professor de línguas orientais da Universidade de Tuninga. Especialista em hebraico e sânscrito.
-Uau. Você escolhe as pessoas de alguma maneira específica?
-Sim. Mas eu… Não posso dizer, me perdoe, Gui. – Ele disse, enigmático. Bicha enigmática do caralho. Mal sabia ele que eu estava louco de vontade de sair de perto deles dois. Até porque Anastácia Romanov estava mordendo a barra da saia da esposa de um Senador. A prima aos gritos tentava desvencilhar o cão da saia da mulher do político, mais com medo que outro pobre poodle da dinastia Romanov tivesse o trágico fim de Rasputin que morreu engasgado com o diamante. Ela gritava:
-Anastaciaaaaaa!
E os repórteres como urubus na carniça enchendo de flshes o cão que quanto mais disparos, mais mordia a barra do vestido.
Era uma coisa simples, mas ganhou uma dimensão de catástrofe, porque aquela porra daquele desprezível poodle que só precisava tomar uma bica pra soltar a barra da saia, era pra eles a figura mais importante daquela vernissage. Aproveitei a zoeira e me esgueirei entre as pessoas que acudiam a mulher do senador. Peguei uma nova taça de champanhe carregada e parti pra ver se achava a mocinha das pernas longas.
Finalmente a encontrei no segundo andar do museu, contemplando outra pintura.

-Oi. – Eu disse.
-Hã? Ah, você. Tudo bem? – Ela disse, e vi em seu sorriso murcho que algo da magia havia se perdido. Ela não mais estava radiante. Talvez pela forma efusiva que a perneta bizarra da minha prima tinha me agarrado.

Percebi que ela estava distante e resolvi não insistir. Se há uma coisa que um homem aprende com a idade é quando o lance não vai dar liga.
Ela voltou-se para a pintura e então eu acabei olhando também e foi só aí que uma coisa feito uma descarga elétrica me subiu dos pés à cabeça. Senti o calafrio assim que bati os olhos na figura. Sentado numa pedra, posição de lótus, os olhos fechados e a boca entreaberta. A cabeça ligeiramente virada para o céu azul sobre ele.

Era ele. Era o velho. O velho que havia me ameaçado, o velho que… Era velho quando eu era um menino. Ele estava igualzinho. Igualzinho, eu já não podia parar de olhar para aquela figura.

Como? Como? Quem era ele? Por que Fabiano Visconti havia escolhido justo aquela figura tenebrosa para pintar?

Desci correndo pelas escadas do museu ate chegar ao Fabiano. Ele estava conversando com agentes internacionais, de modo que fui obrigado a esperar a rodada dos negócios terminarem para poder falar com ele. Enquanto Fabiano conversava em francês fluente com três marchands, tentei levar a prima até lá. Dei uma desculpa canhestra de que queria mostrar a ela uma coisa qualquer.
Subimos.
Uma vez no segundo andar, fui ate o final do corredor e lhe mostrei a pintura do velho.

-Sabe quem é esse, Lucrécia?
-Sei. Um amigo nosso.
-A-amigo? Amigo? Tentei não gaguejar, mas foi impossível.
-Sim, ela disse, na maior naturalidade.
-Mas… Amigo da onde? Quem é esse homem?
-Mas que curioso o senhor, hein Gui?
Eu precisava pensar rápido… Joguei o verde.
-Na verdade, prima… Eu fiquei… Apaixonado por esta pintura. O homem idoso, com este terno preto, esse colete, a bengala ao lado, sentado na pedra olhando para o espaço. É a perfeita materialização da experiência e…
Não sei se percebendo meu lero-lero improvisado, Lucrécia me interrompeu.
-O nome dele é Roderick Deynard. Ele é um lorde inglês. Foi professor de meditação transcendental do Fabiano. É um homem muito inteligente, muito viajado. Ele tem cada história… Um homem que conhece…

Eu já estava prevendo o que ela ia dizer. Lá vinha o que eu temia, todo o pavor sintetizado numa simples palavra…

-…Ocultismo.
Engoli em seco. A champanhe desceu quarada arranhando minha garganta. Fiz menção de tossir, mas nem consegui, porque Lucrécia continuou:

-Ele vem aí. Olha ele lá. – E então ela apontou para o final do corredor e eu vi.

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. com o monte de projetos de esculturas que está a todo vapor nos últimos meses, eu já estava perdendo a esperança de ver a continuação desse conto!!
    Tá muito bom, e já espero os próximos capítulos

  2. Puta que pariu…

    “-Ele vem aí. Olha ele lá. – E então ela apontou para o final do corredor e eu vi.”

    Fazia tempo que uma história não me chamava tanta atenção… O conto tá ótimo… Parabéns!

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