A caixa – Parte 5

-Ahhh meu Deeeeus! -Eu não esperei para saber o que foi aquilo. Corri desesperado, gritando de medo. Eu corri feito um maluco, disparado, feito uma bala. Não sabia para onde estava indo. Na minha mente aquilo lá, o que quer que fosse a coisa que sussurrou “muuungo” na minha orelha, estaria ao meu encalço. Acho que nunca corri tão rápido na minha vida. E nem senti um desespero daqueles, nem quando fui assaltado com um revolver na cabeça numa quebrada de São Paulo.

Dei uma paulada com toda força contra a parede. Bati de cara. Foi feio. Caí para trás desacordado e lá fiquei.

Então, eu acho que passou um tempo que não sei precisar quanto foi. Eu acordei bem zonzo, estava sentindo tudo rodando. Senti um gosto ruim na boca. Era sangue. Tentei me levantar com dificuldade. Tava tudo doendo pra danar. Passei a língua na boca e dei pela falta de um dos meus dentes da frente.

-Puta que pariu. – Eu gemi, cuspindo sangue. Certamente eu tinha engolido o dente. Meu nariz estava vertendo sangue. Percebi porque senti pingar no meu braço.

Eu estava tão concentrado na minha desgraça sangrenta que esqueci por vários minutos o que havia me feito correr feito uma gazela desvairada na escuridão.

Arranquei a camisa e assoei o nariz nela. Senti que empapou de sangue.

Me arrastei pelo chão até a parede. Encostei nela. Eu não sabia que parede era aquela. Podia  ser a “D” ou a “A”. A tontura estava passando quando lembrei do “Mungo”.  Parei para analisar friamente. Eu tinha me precipitado. Era claro que eu tinha embarcado na conversa fiada do velho, e minha mente me pregou uma peça. Não fazia sentido haver um mungo, fosse o que quer que fosse o tal mungo. Pra mim só podia ser gente, já que eu nunca fui dado a acreditar em fantasmas. E uma pessoa estaria na mesma merda que eu, sem ver nada, não teria condições de me seguir. Provavelmente, o que aconteceu é que eu estava predisposto a achar que havia alguma coisa lá, e bem na hora que eu perguntei quem estava ali, já temendo uma resposta, o velho deve ter gritado, ou feitio algum barulho na caixa, lá longe, e minha caixola pegou aquele barulho e criou essa palavra. Eu me senti um grande idiota de me assustar daquele jeito. Paguei o preço alto de ficar sem dente e todo cagado de sangue por essa burrada.

Eu precisava sair dali e somente o pensamento racional seria capaz de fazer isso. Aquele lance de fim do mundo, inferno… Era desculpa dos idiotas para justificar o que não entendem. Pra mim estava claro que alguém havia me prendido numa jaula enorme. Talvez alguma organização tivesse me capturado e me prendido lá por razões espúrias… Não sei o que levaria alguém a fazer isso, talvez estudar o comportamento de pessoas confinadas, podia ser alguma parada militar, como a gente via nos filmes do James Bond.

Talvez até estivessem pedindo o meu resgate. Talvez estivessem filmando com câmeras que filmam no escuro. Imaginei o quão ridícula a minha fuga do “Mungo” teria sido, matando a audiência de rir quando me estatelei contra a parede.

Estariam “eles” rindo de  mim agora? Possivelmente.

Eu precisava clarear as ideias, pois até ali eu vinha apenas reagindo à situação. Eu não estava fazendo acontecer. Eu estava agindo como uma cobaia. Então comecei a pensar se o velho Alfredo na caixa não seria apenas uma gravação. O que me garantia que ele não estava fazendo parte do “esquema” que fabricou o lugar? Nada. O velho poderia ser facilmente apenas uma caixa de som dentro da caixa de aço, e eu burramente trocando ideias com meus captores.

Enquanto eu tentava me  situar mentalmente, a imagem de alguma coisa escura parada, me olhando, não saía da minha cabeça. Eu não via nada, então ela poderia estar em qualquer lugar… Mas não. Era bobagem, eu não devia ficar pensando naquilo, ou eu poderia fazer outra besteira, por meio da sugestão. O cérebro da gente é uma maquina sensacional, mas ele comete muitos erros, e pode colocar tudo a perder quando o desespero bate. Fiquei pensando se eu tivesse acertado a cabeça numa quina, como a caixa de Alfredo. Eu teria morrido na hora. Aquilo foi a maior estupidez que eu cometi.

Voltei meus pensamentos a Alfredo e sua caixa, que segundo ele, estava encolhendo. Era óbvio que o aço, sob condições normais,  não encolhe. Ou o velho era maluco ou ele usou aquilo para me perturbar. Se o velho fosse realmente um operador remoto falando num microfone, ele teria me visto contando. Eu tinha sido estúpido o suficiente para contar meus passos em voz alta, de modo que “eles” saberiam quantos passos eu dei e poderiam usar aquilo para me assustar. Eles queriam me pregar uma peça. Isso pra mim era um fato, pois deu para perceber quando o velho mandou aquele papo de mão fria agarrando nele. A questão era: Por que me prender, e por que me fazer medo. Eu podia ouvir ao longe os gritos. Alfredo estava lá, repetindo seus gritos. Eu ouvia mais claramente quando ele resolvia assoviar.

Só havia uma forma de tirar a verdade e colocar tudo em “pratos limpos”. Eu precisava medir a parede em que eu estava. Se ela ainda tivesse em torno de três mil passos, estaria claro o caô.

Levantei-me e tateei, indo reto com a mão na parede até chegar na quina. Levou um bom tempo para chegar, mas esses passos eu não contei, porque estava mais preocupado em pensar um jeito de convencer os captores de que era melhor me soltar.  Enquanto eu andava, fui pensando em algumas incongruências suspeitas na história de Alfredo. Como assim alguém acorda para ouvir o trem? Como alguém vai deitar, tira a lanterna mas não tira o celular do casaco?  E outra, ele havia me dito que quando chegou la a caixa era grande, media o tamanho da que eu estava, e quando eu medi a caixa dele, ela tinha cerca de uns dez metros. Ela tinha reduzido muito. Isso indicava que ele tinha ficado lá por muito tempo. Mas como alguém fica tanto tempo sem água? Ele já teria morrido. Eu estava me sentindo um lixo completo, a garganta seca, o desespero já me fazia contemplar a possibilidade de tentar beber meu xixi… Não tinha como o velho ficar vivo na caixa. Sem falar que quando eu cheguei ele ja estava nessa caixa com dez metros. Não sei quanto uma pessoa pode respirar, mas acho que o volume de ar ali dentro já teria matado Alfredo por excesso de Co2.

Cheguei no canto. Aquele certamente era o canto CD, porque senti cheiro de merda. Eu havia cagado naquele canto, e isso serviu para marcar o espaço. Então, para um lado eu estaria indo para a direção dos cantos “DA” ou “BC”.

Meu joelho estava doendo terrivelmente, acho que da batida, talvez dor muscular pela corrida esbaforida sem aquecimento. Avancei lentamente tentando dar os passos do mesmo tamanho.

Foi quase uma penitência. Após o longo trajeto, cada passo se tornava mais difícil. Todos os meus músculos pediam para que eu parasse, deitasse, descasasse. As eu não podia me dar a este luxo. Eu precisava seguir em frente.  Talvez o objetivo “deles” fosse esse, descobrir qual era o limite da pessoa. Não duvido que eu não fosse o único a ser submetido à aquela bizarra sessão de torturas. Fiquei ate pensando se não seria um tipo mórbido de programa de pegadinha de Tv. Eu ficaria muito, muito puto se descobrisse depois que aquilo tudo era uma pegadinha e que eu estava fazendo papel de imbecil em radiodifusão.

Precisei parar para descansar quatro vezes no total. O mais difícil era guardar os números na cabeça enquanto eu descansava, pois bastava parar para as ideias começarem a ferver, com possibilidades de como eu iria confrontar o velho assim que voltasse à caixa dele.

Segui em frente, passo após passo, até finalmente chegar na esquina das paredes. Para meu espanto. A caixa tinha mesmo encolhido. Ela media agora dois mil passos apenas. A caixa tinha diminuído cerca de mil passos desde que eu medi pela última vez. Dava uns 740 metros de redução. Lembrei-me de minha primeira e imprecisa medida, de 3567 metros… A segunda tinha sido de 3000 metros, o que indicava que talvez a caixa estivesse realmente encolhendo numa proporção constante.

Meti o dedo na boca e assoviei o mais alto que eu conseguia. Eu era bom naquilo, e não tardou, o velho entendeu. Ouvi o assovio fino dele ao longe, ecoava nas paredes. Cada hora um assoviava, e com isso eu usei o som como uma espécie de radar para chegar até a caixa.

Eu já estava bem perto quando ouvi ele batucar na parede da caixa.

-Tô chegando! – Eu gritei e me dirigi pelo som.

Estiquei o braço para a afrente e fui andando para achar a caixa. Meus dedos encostaram bem na quina. O aço frio e liso, como sempre, sem sinais de soldas, porcas, rebites ou parafusos.

-Salve garoto! Como vai? – Disse ele lá dentro da caixa.

Eu estava certo de que realmente era um homem ali dentro, porque um radio não poderia dar porradas nas paredes de metal.

-E aí, Seu Alfredo?

Parecia um encontro na esquina… O velho não tocou em nossa pequena desavença anterior e nem eu tãopouco. Talvez estivéssemos os dois arrependidos.

-Quer ouvir uma nova teoria, garoto? – Ele perguntou.

-Claro. – Eu disse, me sentando de costas na lateral da caixa dele.

-Os ETs pegaram a gente! – Disse ele em um tom dramático.

-Ets?

-Sim, alienígenas, de outro planeta!

-Hum… – Eu disse, meio que querendo matar o assunto. Mas Alfredo parecia convicto.

-Eles vem na Terra em discos voadores. O governo sabe mas nega o conhecimento. Eles tem umas alianças espúrias com o governo americano, garoto. Eles que permitiram que os alienígenas pegassem as pessoas.

-Seu Alfredo? – Interrompi.

-Sim?

-O senhor está aqui há quanto tempo?

-Não sei, garoto. Já tem algum tempo… Como é tudo escuro, eu não sei direito, mas quando iluminei o relógio com o celular pela ultima vez, tinha passado quase uma semana pelas minhas contas. Mas esse meu relógio é meio ruim, e não da pra ter certeza.

-Mas então, seu Alfredo… Me conte mais sobre o senhor.

-Ah, a gente não tem muita coisa pra fazer, né mesmo, garoto?

-Pois é. O senhor é de onde?

-Cruzeiro. Sabe onde fica?

-Não.

-Em São Paulo…

-Ah… E como que o senhor pegou a mania de ver a hora do trem?

-Coisa de ex-ferroviário.

-Ah, sim. Entendo.

-E você?

-Eu? O que tem eu?

-Você falou que era jornalista, né?

-É, pois é… Eu sou…

-Trabalha na televisão?

-Não, na imprensa escrita mesmo…

-Ah! Deve ser um grande jornal né, meu filho? Hoje estão cada vez mais contratando jornalistas jovens… Caras como eu são fim da linha, a empresa te usa e te cospe como um caroço de laranja. Ninguém quer saer a opinião dos velhos. Somos bananeira que deu cacho, como se diz lá em Cruzeiro. Mas você já deve ser chefe e tudo em alguma sucursal… Acertei? – Ele perguntou. Eu fiquei sem graça de dizer que era um mero foquinha de jornal de bairro. Me limitei ao um lacônico “ã-hã!”.

-Imagino que quando você sair daqui, vai fazer um artigo de jornal: “Como escapei da caixa da morte”… Já posso até ver as manchetes e sua foto na capa.

-Nossa, né seu Alfredo?

-Ah, garoto. Eu estou liquidado. Sou carta fora do baralho.

-Que isso, seu Alfredo.

-Sabe, garoto, todo dia eu meço a minha caixa. Você já viu como está hoje?

-Não.

– Ontem ela tinha treze passos. Hoje são sete.

-Sete?

-Testa aí. – Ele disse.

Levantei-me e apoiei o braço na caixa. Comecei a contar os passos em voz alta. Seis passos e meio.

-Não disse?

-A minha também diminuiu.  – Eu disse, vendo que Alfredo parecia desolado com a constante redução de seu espaço.

-É assim, garoto.

-Mas será que para de encolher?

-Sabe, garoto, quando eu acordei aqui, a primeira coisa que eu fiz foi medir a caixa. Depois comecei a andar nela de um lado a outro. Até que achei uma outra caixa.

-E tinha alguém dentro?

-Tinha.

-Tinha? – Aquilo me soava totalmente surreal. O velho nunca tinha dito aquilo antes. Quer dizer então que ele havia encontrado alguém ali antes de mim.

-Mas então o senhor achou alguém aqui antes de mim?

-Claro que sim, garoto. Mas ele não falava minha língua. Parecia sei lá, um alemão. Quando achei a caixa dele, ela já era do tamanho de um fogão. Eu inicialmente nem imaginava que tinha alguém dentro. Achei que era tipo uma caixa vazia. Trepei nela para ver se alcançava alguma coisa perto do alto, uma viga, um ferro, um fio… Mas não tinha nada. Quando o sujeito falou la qualquer coisa que não entendi eu quase me estatelei no chão. Ele estava desesperado e gritou o dia todo, socando a caixa. A gente tentava se comunicar, mas era impossível.

-E o que aconteceu?

-Bom, eu usava uma parte da minha caixa como latrina. Sabe como é…

-Sei, eu também faço isso. – Eu disse. O velho riu e prosseguiu:

-Eu saí e fui me aliviar. Quando voltei, a caixa já estava menor, e o homem não respondia mais. Chutei, batuquei, gritei ao redor da caixa dele, mas ele não me respondeu mais. Concluí que ele tinha morrido. Foi neste dia que eu me toquei que se a caixa dele encolhia, a minha podia encolher também. E comecei a medir. Fiquei obcecado pelas medidas da caixa. A passagem do tempo aqui no escuro era estranha, e eu tentava preservar a luz do celular o mais que dava. Mas a cada determinado numero de horas, dava pra notar que a caixa reduzia. Não era instantâneo, porque uma das “noites” eu passei num canto acordado, esperando ver a hora que a caixa ia encolher e ela não encolheu. Acho que ela encolhe o tempo todo, mas é tão gradual que a gente nem sente. Quando eu constatei o encolhimento, um bom tempo depois de medir todos os lados da minha caixa diversas vezes ao dia, fui até a caixa do gringo, como eu chamava ele. Mas ela tinha sumido.

-Sumido?

-É. A caixa vai encolhendo até que ela some. Do contrário ela estaria aqui dentro, comigo.

-Bom, seu Alfredo… Pelo que o senhor está dizendo, se quando o senhor acordou na caixa tinha um cara numa caixa pequena na sua caixa, e agora aqui na minha caixa está o senhor nesta caixa cada vez menor, é provável que…

-Sim, garoto era isso que eu estava dizendo! Tem alguém do lado de fora da sua caixa…

-Em outra caixa?

-Exato.

Levantei-me e saí. Enquanto eu andava no escuro, ouvi Alfredo gritando:

-Ei, garoto? Garoto? Cadê você?

-Eu vou falar com ele! – Gritei.

CONTINUA

 

 

 

 

 

 

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Pera aí, como um idoso passa mais de uma semana sem comer, nem beber água e ta ali, vivão e ainda conversando e dando risada??? Acho que tem algo que o Anderson nem sonha sobre esse Sr. Alfredo!

  2. Parte 6 promete hein, mas também fiquei intrigado com o Sr Alfredo, será que alguma coisa no ar da caixa mantem a pessoa viva até a caixa encolher de vez e massacrar a pessoa ali dentro?

  3. Dá pra ficar bastante tempo sem comer. Beber varia de pessoas para pessoa. Mas tem gente que dura muito tempo, preso em escombros pós-terremotos, por exemplo.

    Mas o que eu quero perguntar é se mais alguém notou que a história segue uma linha parecida com os posts de cada capítulo anterior (?).

  4. Meus Deus, entro no Mundo Gump umas 5 x por dia para ver se já tem mais um capítulo.
    Tá virando vício, rsrsrsrs
    Philipe, você está matando a pau com esta história.
    Parabéns!!
    Ganhou mais um seguidor assíduo!!!
    E pelo amor de Deus, manda a parte 6, por favor!!!!

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