A caixa – Parte 36

-Como era mesmo o nome dela? Mara… Né isso? – Ele perguntou, calmamente, olhando sério pra mim. Depois voltou-se para o jornal.

Eu não sabia como reagir. Fiquei tão puto, tão transtornado, que meti a mão e arranquei o jornal dele.

-Porra! A Mara não!

-Você tem que matar ela. – Disse Leonard, com uma fleuma inglesa que me dava ódio.

-Mas por que?

-As bruxas vão usar ela… Usou o seu amigo.  É questão de tempo até as bruxas perceberem que a Mara é seu ponto fraco. Ela vai te cercar até você fazer o que ela quer.

-Arrancar meus olhos?

-Exatamente. – Ele disse, agora sorrindo.

-Não! Eu me recuso! Eu não vou fazer isso.

-Nós temos pouco tempo. A janela de contato com o submundo esta quase concluída. As bruxas não estão brincando…

-Você é louco! Eu não vou compactuar com essa porra, eu não vou matar ninguém.

-Shhh! Olha os outros aí, rapaz.

-Tem que ter outra saída. Quer dizer então que eu tenho que matar todo mundo que eu gosto? E aí que merda de vida é essa? Eu prefiro me matar e acabar de vez com esta porra então.

-É… Isso é uma boa ideia, hein?

-Hã?

-Veja, se você se matar, as bruxas não vão conseguir o que elas precisam e…

-Eu não esteva falando serio.

-Mas devia… Pense bem. Se você se mata, evita muitos problemas, e evita a morte de mais inocentes, e ainda frustra o plano delas. – Disse Leonard, dobrando meticulosamente o jornal.

Eu não podia acreditar que o velho doido estava agora tentando me convencer a cometer suicídio. Mas gradualmente, aquela ideia começou a se tornar mais e mais lógica para mim. Eu estava mesmo vivendo uma vida sem sentido. O mundo estava uma bosta, tudo era ruim, e eu estava sendo o culpado da morte de todas as pessoas que se aproximavam de mim. Eu, um aleijado, sem casa, com pouco dinheiro, humilhado pelo chefe, sem futuro. Talvez o que Leonard sugeria fosse a coisa certa a fazer.

-Talvez você esteja certo. – Eu disse a ele, baixando minha cabeça.

Leonard pareceu animado. Levantou-se, olhou para os lados. Então meteu a mão naquele paletó de terno surrado e de dentro tirou uma espécie de punhal antigo de metal escuro, com inscrições. A lâmina tinha quatro lados sendo somente dois cortantes. Havia uma cabeça horrível esculpida no cabo.

-Vai garoto. Precisa ter coragem para fazer isso. Não é qualquer um que tem e eu admiro isso em você. Vamos ali no canto, eu faço a barreira e você enfia isso no coração. Essa lâmina esta encantada e você não vai sentir nada.  Assim que a lâmina beber seu sangue, ela sugará sua alma.

Eu estava atordoado. As palavras dele me inspiravam. Ele dizia que eu seria um herói, que iria eliminar o mal da face da Terra. Concordei. Larguei minha mochila na escadaria da igreja e fui com ele até o canto, perto de uma das enormes colunas jônicas que sustentavam a fachada da igreja.

Leonard ficou na minha frente.

-Está pronto? – Ele perguntou.

-Estou. – Eu disse, vacialnte. Não tinha certeza se realmente seria o caminho tirar minha própria vida, mas Leonard era persuasivo. Ele notou que eu estava hesitante. Me disse que a lâmina iria me fazer reencarnar, eu não sentiria dor, nem lembraria de nada…

Peguei a lâmina fria das mãos dele.

-Estou pronto. – Eu disse.

-Quando quiser. – Falou ele, virando de costas para mim, entrando na minha frente e abrindo uma folha de jornal dupla na direção da Avenida Paulista, onde carros e ônibus passavam apressados, alheios ao que estávamos fazendo.

“Então é assim que vai terminar.” – Pensei. Me sacrificarei pelo mundo.

-Senhor Deus, em tuas mãos entrego o meu espírito. – Eu disse.  E então, estiquei o punhal no alto, na direção do coração.

Optei por dar uma estocada única e profunda.

Em dois segundos tudo estaria acabado…

Mas então, antes que eu pudesse enfiar aquele troço no meu peito, uma coisa acertou Leonard. Ele caiu gritando no chão.

Eu me assustei. Guardei o punhal no bolso da jaqueta.

-O que foi? O que foi? – Eu perguntei assustado.

Ele somente gemia e então eu vi uma coisa escura cravada fundo nas costas dele. Era uma espécie de faca.

Então o inimaginável aconteceu. O rosto de Leonard se contorceu de dor e gradualmente virou um outro rosto. Horrível, disforme.

Atônito, vi Leonard descendo correndo as escadas da igreja na minha direção.

-Puta que pariu, moleque!

-Leonard? É você?

-Não, idiota. Sou sua avó! – Ele disse, muito irritado.

Então eu olhei de volta para o sujeito caído no chão. Ele começou a derreter. Literalmente, derreteu ali, na minha frente, como se transformasse numa poça imunda de um líquido malcheiroso

-Mas… O que é isso? Como?

Leonard nada disse. Abaixou-se e arrancou a faca das costas do cadáver que agora já era quase uma massa disforme que se dissolvia numa poça escura e borbulhante.  Leonard turou um pano imaculadamente branco do bolso do casaco e limpou a lâmina. Em seguida, ele pegou uma flanela bem suja e enrolou a faca. Guardou no casaco. Algumas pessoas tinham visto quando o corpo caiu, e vieram na nossa direção, achando que era alguém passando mal.

Então havia uma pequena multidão de seis ou sete olhando estupefatos a pessoa se dissolver na frente da igreja.
Uma velha olhou para nós e perguntou:

-Mas que desgraça é essa?
-Calma, senhora… É que essa é uma estatua de cera aqui do rapaz. Caiu no chão quente e derreteu por causa do sol. – Disse Leonard.
-Ah, é promessa, né, Filho? – Falou a velha sorrindo.
Eu sorri sem graça, sem saber o que dizer.

Curiosamente, a desculpa funcionou. Mas as pessoas não se afastaram. Leonard se misturou no meio do bolinho de gente, me puxando de lado, para sair discretamente da confusão.

-Essas malditas estão apelando. Estão subindo o cacife. Estão jogando cada vez mais alto. – Leonard disse entre os dentes.

-Eu fiquei com a faca. – Eu disse, mostrando o cabo dela no meu bolso.

-Me dá! – Ele disse.

Eu entreguei a ele e ele guardou no casaco.

-Venha! – Saiu me arrastando na direção da igreja. Só consegui pegar a mochila e fomos correndo la para dentro.

Fomos nos encontrar com o padre. Ele estava na sacristia, ouvindo pelo radio a notícia do incêndio.

-Elas usaram um mandrugo. – Disse Leonard, jogando a adaga sobre a mesa de madeira escura com tampo de mármore branco.

-Que isso? Tá louco? Trazer essa arma do inferno pra cá? Isso é a casa de Deus! – Assustou-se o padre.

-O mandrugo se passou por mim, quase convenceu ele a se matar. se eu não chego na hora…

-Ele conseguiu resistir a um mandrugo? – O padre parecia não acreditar. Leonard assentiu com a cabeça e esticou o polegar para cima.  – Que abuso! Colocaram um madrugo na porta da casa de Deus!

-Senhores, eu não estou entendendo nada.  – Eu disse, me sentando à mesa.

-Um mandrugo é um ser infernal que tem o poder de se passar por outras pessoas. Mas ele só pode assumir a forma de uma pessoa a cada dois anos, de acordo com o ciclo do Inferno. O poder do madrugo é o convencimento. Ele usa uma poderosa sugestão, que torna suas vítimas em inocentes vaquinhas de presépio. O Mandrugo pode facilmente convencer qualquer um a fazer qualquer coisa. Não há muitos que consigam resistir muito tempo ao seu poder de convencimento.

-O mandrugo ia fazer você se matar, e ia roubar seus olhos e levar para a áugura.  – Disse Leonard.

-Então elas já sabem que matamos o Cabelinho.

-Sim…  Agora elas já devem estar nervosas como “siri na lata”. A essa altura já sabem que  detonamos o mandrugo. – Respondeu Leonard.

-Verdade… – Disse o Padre, indo até um armário escuro, com alguns livros, objetos de missa e com uma cruz entalhada em portas decoradas com almofadões de madeira-de-lei. Ele abriu uma das portas, e de lá tirou um grande jarro cheio de água.

Leonard começou a rir.

-O que é? O que foi? – Perguntei sem entender.

-Nós vamos dar um troquinho nelas. Olha só. Isso aqui é uma purba do inferno. Está ligada diretamente aos mais profundos meandros da escuridão…- Disse o padre. Ele então derramou lentamente a água sobre a lâmina que estava na mesa.

A lâmina vibrou e começou a soltar fumaça, fazendo um som assim:  “ffffffffssssssss”

-A essa altura já tá dando “barata voa” no inferno. – Disse Leonard.

A adaga foi então esquentando, esquentando e ficou vermelha como aço em brasa e então derreteu numa massa quente, que soltava fumaça para todo lado. Quando a poça fumegante tornou a se cristalizar, virou uma espécie de pedra vulcânica escura, repleta de cristais.

-A bruxa que invocou ele deve estar se contorcendo de dor bem agora, porque os demônios vão vingar isso aí.

-Virou pedra. – Eu disse.

-É disso que é feito o inferno. – Falou Leonard.

-Se você tivesse enfiado isso no peito, já era! – Complementou o padre.

-E agora? – Indaguei.

-Agora é esperarmos. Se você já resolveu o problema do corpo do seu amigo, é hora de ir fazer o reconhecimento no IML… Os bombeiros vão levar pra lá.

-Certamente, pelo fogaréu, não sobrou nada.

-Provavelmente será identificado pela arcada dentaria e então você vai providenciar o velório. Sabe da família? – Perguntou o padre.

-Ele só tem uma tia…

-Ligue para ela. Olha, nós temos aqui um pequeno capital para essas situações… Tome. – Disse Leonard, tirando um maço grosso de notas de dólar do casaco. Ele me estendeu o maço.  – É para o funeral. Nós ja temos um jazigo perpétuo onde você vai enterrar seu amigo.

-Mas ele é lá do Mato Grosso…

-Ele tem que ser enterrado aqui. Fica na Consolação. Lembre-se, a áugura vai aparecer. Essa é nossa jogada. Ainda mais agora que frustramos pela segunda vez o plano delas e ainda demos um belo troco.

-Fique à vontade para ligar, chamar os amigos dele. – Falou o padre, me mostrando um antiquado telefone perto de um rack junto a um antigo relógio na parede.

-Teremos que agilizar o atestado de óbito. Deixa comigo que já vou ligar aqui para uns amigos da funerária. – Disse o padre.

Cerca de duas horas depois, eu já havia confirmado no quartel dos bombeiros sobre o corpo no apartamento que pegou fogo, avisado da morte dele para os amigos da USP, e deixado recado com a vizinha da tia dele. Afim de evitar que eu corresse riscos, Leonard disse que eu devia ficar naquela noite na sacristia da igreja, pois era um território seguro. Concordei.  Leonard disse que enquanto isso, iria ao IML agilizar a burocracia, mas somente a tia dele iria poder liberar o corpo. Enquanto ela não viesse, ele iria providenciar todos os procedimentos para o enterro. Leonard tinha pressa, pois segundo me disse, mais e mais crânios estavam sendo espalhados pela cidade.

-Por que não matam as bruxas que estão fazendo isso?

-Matamos uma.

-E não adiantou? – Indaguei.

-Foi um tiro no pé. Elas estão usando pessoas influenciáveis agora. Elas controlam esses pobres coitados à distância, como se fossem zumbis. As bruxas estão ficando mais espertas, aquelas malditas. – Disse o padre.

-Não podemos perder tempo. – Disse Leonard olhando o relógio.

Então os dois saíram apressados, e fiquei sozinho na sacristia.

Então me ocorreu que talvez a Mara pudesse ter visto a notícia do incêndio… Liguei para a casa dela.

-Alô? – Era ela.

-Mara! Sou eu… Anderson!

-Graças a Deus! – Ela estava chorando. Havia visto na Tv e escutou sobre os corpos.

-Os corpos?

-Sim… Sete mortos. – Ela disse.

Eu me senti péssimo. Havia pensando somente nos meus problemas. Havia indiretamente contribuído para a morte de seis pessoas.

Ficamos um tempo em silêncio.

-Que merda… – Eu disse.

-É… Quando você vem aqui? Onde você está?

-Eu… Estou numa igreja… Um amigo esta me ajudando… O meu amigo, meu melhor amigo… Ele morreu queimado.

-Oh… Meu Deus! Sinto muito, Anderson. – Ela disse.

-Tudo… Tudo bem. Só estou ligando para dizer que estou bem.

-Graças a Deus… Espere.

-O que foi?

-Não… Não… Quem é você?

-Mara?

-Não… – Havia medo na voz de Mara. Ela parecia aterrorizada.

-Mara? Mara? Alô??? – Eu gritava no telefone.

Então ouvi mara gritando ao fundo e uma voz decrépita que eu já conhecia surgiu do outro lado da linha:

-Temos contas a acertar, menininho…

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Vishhhh, a veia rastreou a ligação e achou o amor do Anderson, kkkkkkkkk. Veia esperta, agora o Anderson tem que ir lá salvar a sua amada e enfrentar forças sobrenaturais. Tá ficando emocionante essa história…

  2. Olha essa mancada! o Cabelinho já havia morrido no hospital..né? mancadinha, o Cabelinho já estava morto! ele morreu duas vezes!

  3. Verdade… o cabelinho já tinha morrido no hospital, e sua alma eu acho, comida pelo mungo. Então o envolucro do capeta que era seu corpo não precisava ter sua morte notificada porque pro resto do mundo o cabelinha já tava morto.

    • Quando a pessoa morre no hospital, o corpo tem um traslado direto para o necrotério e de lá, depois de liberado o corpo, segue para a funerária para preparação e dali para o enterro. Ele saiu do hospital porque pelo ponto de vista da Medicina, não estava morto. Porém, durante o tempo que ficou na caixa, ele estava em um coma profundo, que foi se agravando. A faxineira concluiu que ele estava morto e disse isso para o Anderson.

  4. “MANDRUGO”, “ciclo do inferno”, “purba”….,rsrsrs!

    “Mais e mais crânios estavam sendo espalhados pela cidade”…. então era voce mesmo que estava pagando a “valhota para espalhar os crâneos né? kkkkk

    Olha só como são as coisas!… Eu aqui dando palpites e o PHILLIPE já estava com o conto todo montado na cabeça. GRANDE GAROTO. E é claro , não vai mudar o foco da história. Só alguns detalhes que podem ser adicionado ou alterados!
    Dá-lhe “GURI”!
    37…38…39…

  5. Sério, precisa prestar mais atenção…
    Na parte 21:
    “-Vá até uma duna em uma terça-feira. Chame por Leonard, sete vezes e ele virá. – Disse o inseto no parapeito, com sua voz macabra.”
    Depois na parte 26:
    “E o besouro tinha dito que tinha que ser em noite de lua.”
    Onde fala de “lua (ou lua cheia???)”.
    Depois, na parte 25:
    “Por pura sorte, vi, atrás da bolinha sorridente recortada no jornal, o calendário lunar. Era lua cheia. E a data era terça-feira.”
    Se era terça-feira e o cara viajou no mesmo dia pra Cabo Frio, então ele estava na “duna” na madrugada de “quarta-feira”… (a menos que ele estivesse com um recorte do jornal de amanhã nas mãos!)

    • Eu to criando e postando, não fiz revisão, mas é bom vc botar esses vacilos, pq eu vou la e corrijo. Como eu vou criando, quando cito algo la na frente posso me enganar pensando que escrevi algum detalhe que só pensei e acabei não escrevendo. Valeu.

      • Sem crise! Eu tô enchendo o saco aqui, mas é porque eu tô curtindo!
        Eu me apego aos detalhes porque também escrevo e não consigo concluir rápido as histórias por ficar refazendo justamente os detalhes!
        Abs

  6. Já vi que esse “FOREST” é um dos leitores mais atentos e interesados nessa história.
    Tá bem “ligado”, nos detalhes. Mais que uns e outros, inclusive eu. Bom, também não estou aqui para encontrar erros ou criticar. Só pra curtir, mesmo!
    Tá desculpado, o Forest!
    Abraço!

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