A caixa – Parte 31

Como sempre acontecia comigo, acordei sem saber onde eu estava.

Havia um total silêncio e a escuridão era completa. Eu estava com frio. Não ouvia nenhum ruído.

“Puta que pariu!  O velho desgraçado saiu e me deixou aqui! ” – Pensei.

Eu mal podia acreditar que ele tivesse feito aquilo comigo. Eu estava ainda na caixa… E precisava sair dali, mas tentei me mexer e não consegui.

-Leonard? Leonard? – Gritei, na esperança que ele estivesse comigo em algum lugar na caixa. Mas ele não veio.

Então aconteceu uma coisa estranha.  Um fio de luz alaranjada surgiu à minha frente, e desenhou um retângulo. Antes que eu pudesse me questionar o que era aquilo, um clarão se formou, e eu entendi que aquilo era uma porta aberta. Havia uma pessoa na porta, mas no contra-luz não vi quem era.

-Leonard? É você? – Perguntei.

Mas a pessoa não me respondeu. Ao contrário, ela bateu a porta e tudo ficou escuro novamente.

Eu tentei me levantar. Foi difícil, pois estava tudo doendo.  Com dificuldade vi que estava numa cama. Senti uma coisa amarrada no meu braço. Tive medo de mexer naquilo no escuro.

Então a porta se abriu novamente. A luz iluminou o ambiente e eu percebi que estava num tipo de cela. Ao meu lado, um suporte oxidado, onde dois garrafões de soro estavam pendurados de cabeça para baixo, gotejando num tubinho que ia direto para o meu braço. Aquilo me causou espanto, pois de uma forma que eu não podia compreender, o meu braço que tinha sido arrancado, estava ali. Normalzinho.

A cama dura havia me dado uma tremenda dor nas costas.

Eu não disse nada. Fiquei ali, sentado na beira da cama, esperando para ver o que acontecia. Fiquei olhando o meu braço. Ele estava ali, mas eu não conseguia mexer a mão.

Leonard surgiu na porta, acompanhado de um outro homem, mais novo. Ele tinha o rosto marcado por cicatrizes de acne. Leonard se aproximou em silêncio, vestindo seu paletó surrado e as calças de linho amassadas. O homem o acompanhou, mantendo-se dois passos atrás.

-Tá consciente? – Ele me perguntou.

-Tô.

-O sacristão me disse que você tinha acordado… Finalmente.

-Há quanto tempo…

-Três dias e quatro horas. – Ele respondeu de pronto, sem esperar que eu terminasse minha pergunta. Estranhamente, Leonard sabia que eu  estava curioso sobre o quanto tempo estava desacordado.

-Eu… Eu não estou conseguindo mexer a minha mão.

-Nem vai. – Ele disse.  – Seu braço morreu.

-Hã?

-Se eu não tivesse te tirado de lá, esse corpo ai seria apenas um invólucro vazio. Uma caixa desprovida de conteúdo. – Disse Leonard, apontando pra mim.

Ele olhou para o sujeito, que apenas moveu a cabeça para a frente, e então o sujeito magro da cara marcada saiu do quarto de paredes brancas e sem janelas. Leonard andou até o canto da parede, onde havia uma antiga cadeira de metal e compensado, com design dos anos 50. Leonard puxou a cadeira até perto da cama e sentou-se.

Ficamos ali, quietos por um tempo, até que Leonard rompeu o silêncio.

-Eu não preciso dizer o quão estúpida foi aquela coisa de se espetar com a fíbula, né garoto?

-É… – Eu disse, olhando para baixo. Eu me sentia ainda mais idiota quando ele usava aquele tom comigo.

-Olha as consequências… Seu amigo morreu, você perdeu a autonomia sobre o seu braço esquerdo… Tudo porque? Tudo por uma menina, um maldito rabo-de-saia!

 

-Não! Não fale assim. Mara era minha amiga, ela não merecia…

-Isso não interessa! – Ele disse, socando a cama. O velho parecia nervoso.

-E o que interessa pra você, Leonard?

-A velha! A velha sem os olhos! Se eu não achar logo esta velha, ela vai trazer ao mundo uma abominação que você não faz ideia. Você lembra daquela coisa na caixa? A coisa que comeu o seu braço? Pois aquilo não é nada perto do que essa velha vai trazer ao seu mundo! Ao nosso mundo, garoto! Você é a chave para eu chegar até essa bruxa desgraçada, e me faz perder tempo com buscas infantis a namoradinhas retardadas.

-Mas você não entende… Eu não posso abandonar a Mara…

-Abandonar? Quem falou em abandonar, Anderson? Sua amiga saiu. Ela acordou assim que você resolver fazer a burrice daquele auto-sacrifício.

-A Mara? Acordou?

-Sim. Ela acordou e foi para casa.

-Mas então deu certo! – Eu exclamei,  com o peito explodindo de felicidade. Levantei-me apressado e empolgado, mas Leonard me agarrou pelo braço e me puxou para a cama.

-Agora escute… Você precisa saber algumas coisas: A áugura vai voltar atrás de você. Ela vai querer a fíbula de volta e irá lhe cobrar pelo feitiço.

-E o que eu faço?

-Você tem que me levar até ela.

-Levar como, lá naquele convento?

-Não, garoto. Já estive lá. A velha escapou. Ela nunca fica mais de um dia no mesmo lugar. Se ficasse, eu já tinha acabado com ela.

-Mas Leonard, como vou levar você até a velha se é a velha que me acha e não o contrario?

-As áuguras não são burras. Elas não caem em armadilhas simples. Você precisa levá-la a um terreno sagrado. Uma igreja ou um cemitério…  Uma vez lá, você vai jogar isso nela. – Ele disse, tirando do paletó um vidrinho de cristal que lembrava um vidro de perfume trabalhado.  Estava cheio de uma coisa escura.

-Que merda é essa?

-Cuidado. Muito cuidado. Isso é sangue de são Nicéforo.

-Quem?

-São Nicéforo. Um antigo mago, de Constantinopla. Isso que está nas suas mãos é uma fórmula poderosíssima, e única. Isso vai fazer com que a áugura fique cega.  – Ele disse.

-Mas ela não tem os olhos e enxerga.

-Isso. Ela usa a bruxaria para enxergar no plano do astral. O contato com o sangue de São Nicéforo vai bloquear a visão astral da áugura por uns mil anos! Cega, ela não poderá fugir, mas precisará de olhos humanos para poder ver. Então ela…

-Ela estava querendo os meus olhos!

-Ela vai tentar arrancar os seus olhos, para poder enxergar com eles. É a única escapatória que ela tem. Mas ela não vai conseguir, claro.

-Mas vamos supor que ela conseguisse arrancar um olho meu…

-As outras àuguras vão saber tudo que ela enxergar, e ela saberá tudo que as irmãs estarão vendo. Será a pior coisa que pode acontecer, pois como já aconteceu antes, uma delas vai para um lugar conhecido e ficará lá, parada, olhando para um objeto até que as demais repitam isso e se juntem a ela. Uma vez reunidas elas terão sua força aumentada… E não queira nem imaginar o que isso poderá causar no mundo. Não preciso dar muitas informações além do fato de que minha ordem está caçando essas imundas pela Terra há mais de mil anos.

-Tá… Vamos repassar. Eu levo a augura numa igreja, jogo o sangue nela, e aí?

-Ela vai avançar em você. Tentará de todas as formas te obrigar a dar o seu olho para ela.

-E porque o meu e não outro qualquer?

-Porque não é qualquer olho que funciona. Ao fazer um pacto com a Augura, você passou a transitar no astral. E a augura precisa de um olho que tenha olhado para ela. Você, querendo ou não, deve o pagamento a ela e isso faz com que somente o seu olho sirva aos propósitos da áugura.

-Tá, tá bom, Leonard. Ela vai avançar em mim, vai tentar arrancar o meu olho… Eu entendi. Eu quero saber é em que parte você entra na jogada e mata a maldita.

-Eu não posso te falar isso, se eu falar, ela terá como saber examinando sua alma.  Você só pode saber o que ela já sabe, que eu vou matar ela. Mas isso ela sabe há muitos anos. – Ele riu. – É só uma questão de tempo.

– E o sangue? Ela vai saber!

-Não, não vai. – Ele riu misteriosamente. Leonard se levantou, foi até a porta. – Espere aí.  – Ele disse.

Fiquei ali sozinho, contemplando meu braço morto. Eu tentava de todas as formas mover a mão, mas ela era como um apêndice, um pedaço de carne inerte. Aquilo me dava vontade de chorar. Como eu ia voltar a escrever sem mexer o braço esquerdo? Eu havia me tornado um aleijado. Leonard voltou, trazendo consigo um frasco exatamente igual ao do sangue, só que sem sangue.

-Que isso?

-Olhe para este vidro. Olhe bem.

-Tá tô olhando.

-Agora cheire. – Ele disse.

Eu abri o vidro e um forte e delicioso perfume invadiu o ambiente.

-Perfume?

-Pronto. Agora, acabamos de trocar o elemento sangue pelo elemento perfume. Se ela te sondar, o que ela verá no lugar do sangue de São Nicéforo é o perfume.

-Será que isso funciona mesmo?

-Relaxe, garoto.

-“No olho dos outros é refresco”.  – Eu disse.

-Bem, de resto, haja como sempre fez. – Ele disse, removendo a seringa do soro do meu braço.

-Então eu posso ir ver a Mara?

-Pode, mas antes, deixa eu te dizer só mais uma coisa.

-Hã?

-A Mara não deve saber de nada. Nem da velha, nem da fíbula… Certamente ela se lembrará de algumas coisas, mas outras parecerão pesadelos. Sob hipótese alguma fale sobre mim para ela. Para ela e nem ninguém.

-Tá.

-É sério.

-Tá, pô!

-Então pode ir.

-Só mais uma pergunta? – Eu questionei, já na porta.

-Vá em frente.

-Que mão era aquela que moeu o monstro?

-Era a mão de São Nicéforo. Uma relíquia antiga.

-Era verde!

-Sim, é verde, e fede! Mas ela está oculta e preservada desde o ano 855! Considerando isso, ela está até conservada.

-Como saímos da caixa?

-Você pediu para fazer uma pergunta. Eu respondi. Agora já está querendo duas. – Disse Leonard.

Eu vi que ele não ia me dar detalhes, então eu agradeci e saí.

Estava num quarto sem janelas, nos fundos de uma casinha, que ficava num terreno nos fundos de uma capela.

Fui para a rua, andando com meu braço morto. Era incrível, pois eu não sentia nada. Nem dor, nem tato, nada. Ele estava ali, mas era como se não estivesse. Pensei em colocar o braço uma tipóia, o que justificaria para as pessoas que me conheciam o fato de que eu não estar mexendo o mesmo. Isso também evitaria que eu inadvertidamente batesse o braço em algum lugar, me cortasse ou ferisse de algum outro modo.

Eu precisava ir ao encontro de Mara. Assim, a primeira coisa que eu fiz foi pegar um taxi e ir direto para casa. Eu precisava tomar um banho, me recompor. Estava com a barba por fazer, uma aparência horrível e eu não queria que mara me visse naquele estado.  Indiquei ao motorista como chegar.

Corri para o elevador esperando não encontrar nenhum vizinho chato. Eu só pensava num bom e relaxante banho. O lance do braço era uma merda, mas a sensação de estar finalmente livre da caixa era infinitamente melhor.

Custei a conseguir pegar a chave na mochila, porque abrir o ziper do bolso externo onde estava a chave com uma mão só se mostrava um pesadelo.

Após lutar alguns minutos, consegui puxar o ziper com o dente, segurando a mochila com uma mão. Peguei a chave e abri a porta.

Assim que eu abri a porta, aconteceu uma coisa insólita:

Dei de cara com o Cabelinho, enfiado num roupão antiquado, sentado no sofá da sala fumando um beck.

-Coé?

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. aaaaa véééiii, que massa, o cabelinho vivo, meu o conto ta muito massa, ou será um fantasma que vai fazer companhia para o Anderson pro resto da vida dele?

  2. “Dei de cara com o Cabelinho, enfiado num roupão antiquado, sentado no sofá da sala fumando um beck:-Coé?”

    Atira nele! ATIRA!

    Com esse braço não: atira com o outro!

  3. CABELINHOOOOOLOO!!!!
    É VOCE MESMO, CAAAAAAAAARA!
    URRA! ALELUIA
    Que bom ver você (VIVO!).Pqp, cu mpadi.Como voce……etc, etc, etc ….e por ai vai….rsrsrsrs!
    “Bravo! Bravo! Bravo! (phillipe).

  4. [b]Kbelinho…, sei, ele agora tem um verme o corpo estava em coma vazio, então o verme veio e assumiu o controle. Kbelinho já era, agora o que há é um coisa ruim dentro do corpo vazio dele! Sorte Anderson, vc é recruta de tudo, uma isca e vai levar mais mordidas![/b]

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