A caixa – Parte 28

-Como assim? O que vocês estão escondendo? O que não me disseram? -Perguntei, de uma só vez. Eu estava ficando nervoso e foi a primeira vez que levantei a voz numa igreja.

-Calma, jovem. – Disse o padre, apoiado no altar.

Leonard estava quieto, parecia pensativo, ou talvez apenas estivesse se divertindo internamente ao ver meu desassossego.

-A caixa é um lugar para onde entidades podem enviar as pessoas. Na antiguidade, antes dos domínios ctônicos às regiões imateriais, a caixa foi uma prisão para as criaturas-não-físicas.

-Criaturas o que?

-Isso não importa! – Disse Leonard, rompendo o silêncio no banco da igreja. – O fato é: A pessoa, uma vez na caixa, não pode mais sair dela.

-Mas eu saí!

-Seu caso é raro. Poucos conseguiram sair. -Disse o padre.

-A maioria dos que saem da caixa, acabam voltando para ela. E se resistem, por alguma razão, morrem logo.

-Eu sei. Como te falei na viagem, foi tentando me livrar da maldição que conheci a velha sem os olhos.

-Sim, mas entenda. Você não acabou com aquilo que erroneamente acredita ser uma maldição. Você apenas passou o seu problema para frente, trocou de lugar com outra pessoa, no caso, seu amigo. – Disse Leonard.

-Então, não há o que possamos fazer para salvar a Mara? – Perguntei aos dois.

O padre desceu os degraus do altar e sentou-se no banco, ao lado de Leonard. Houve um pouco de silêncio na igreja.

-Tem que ter um jeito de salvá-la. – Eu disse a eles. Então, me lembrei do caso que o francês havia me contado.  – E o francês? Você salvou ele, entrando na caixa pelo banheiro da fazenda! – Eu disse, apontando para Leonard.

-Sim, é verdade… – Ele respondeu. Então o padre olhou para ele com um olhar estranho. Percebi que talvez tivesse inadvertidamente, revelado algum segredo.

-Mas isso foi há muito tempo, quando eu era jovem e mais inexperiente. -Ele disse. – Hoje, eu não teria feito isso.

Leonard não me parecia muito disposto a me ajudar. Me senti usado. Eu que imaginava que ele estava ali para me auxiliar a libertar Mara daquele lugar desgraçado, estava apenas tentando arrancar informações que o levassem ao paradeiro da velha. Fosse o que fosse que estivesse rolando ali, e me parecia algo que eu não compreendia direito, com aqueles velhos seguindo bruxas, eu era apenas um pequeno detalhe, uma questão menor, ao qual os dois pouco dedicavam alguma atenção.

-Então é isso? Não vão me ajudar?

-Jovem, você precisa entender que… – Começou o padre, com aquela conversa fiada de político. Eu estava puto, a sensação de urgência era máxima dentro de mim. Me sentia sendo feito de idiota pelos dois velhotes.

-Mas que merda, porra! – Berrei

-Olha a boca! – Gritou o padre apontando o dedo pra mim! Sua voz ecoou no salão.

-Se vocês não podem fazer nada, eu mesmo resolvo! – Eu disse, e levantando a fíbula no ar, estoquei-a contra a minha mão.

-Nããão! – Gritaram os dois. Eu vi tudo ficando turvo. Foi rápido. Me lembro com certa dificuldade de ver Leonard dar um salto do banco e vir correndo para cima de mim. Logo depois tudo começou a se apagar. Eu vi a fíbula atravessando a minha mão e gotejando no chão da igreja. Caí pra trás e tudo se apagou.

Não havia nada. Nem som, nem medo, nem sofrimento. Eu estava apenas afundando num creme escuro e frio, que me engolfava e penetrava pelos meus olhos, ouvidos e boca, me absorvendo.

Abri os olhos e tinha uma gosma em mim. Eu estava recoberto com aquela coisa gelada e cremosa. Tentei ficar em pé, mas estava escorregadio. Custei a me equilibrar. Eu tava coberto daquilo. Sentia o gosto estranho daquele troço. Esfreguei as mãos no rosto e tirei uma grande quantidade da gosma. Meu cabelo também estava repleto daquilo que empapava minha calça, e até dentro da minha cueca estava cheio da gosma. O lugar era a caixa, a escuridão de sempre, o cheiro de poeira que eu já estava desacostumado. O frio. O chão reto e liso.

-Porra… Que merda é essa? Estou todo gozado!

A gosma me deixou sentindo um enorme frio e eu estava batendo os dentes.

-Ai que merda! – Gemi quando senti a mão doendo. Aquela tinha sido uma atuação dramática, e a dor do furo veio comigo para a caixa. E estava resignado. Sabia que não ia conseguir ficar lá fora sem saber como estava Mara na caixa. Apostei todas as minhas fichas que o Leonard poderia me ajudar a sair de lá se ele quisesse.  Aliás certamente ele teria que vir atras de mim se quisesse realmente saber como achar a velha. Então, tudo que eu tinha a fazer era sair pela caixa em busca de Mara, torcendo para que ela estivesse viva. Quando Leonard nos encontrasse.

“Deus queira que não seja tarde demais”. – Pensei.

Tateando, senti que minha mochila tinha vindo comigo, o que era um alívio. No entanto, a fíbula não estava mais comigo e eu esfreguei as mãos na gosma que se acumulava pelo chão, tentando localizá-la, mas foi em vão. Presumi que Leonard ou o Padre tivessem removido a fíbula a tempo e ela não veio para a caixa. Tirei a mochila, me ajoelhei no chão, vasculhando com o tato. Encontrei minha lanterna com pilhas novas. Eu tinha comigo meia garrafa de água mineral que comprei na parada do ônibus, e dois pacotes de biscoito.

Usei a lanterna para iluminar meu caminho  na escuridão da caixa. Com a luz da lanterna, vi que a gosma que me lambrecava todo era transparente, como um gel de cabelo. Aquilo era nojento e eu não fazia a menor ideia porque das outras vezes eu tinha chegado limpo na caixa e dessa vez estava repleto daquele troço. Parecia uma clara de ovo.

-Maraaaa? – Comecei gritando. A falta do eco me mostrou que estava numa caixa grande. Talvez eu estivesse numa caixa longe da caixa da Mara.

Caminhei durante muito tempo, iluminando com a lanterna, até cair na real que não tinha comigo pilhas sobressalentes, de modo que era melhor apagar a luz para poupar a energia, e usá-la nos momentos oportunos.

Andei incansavelmente, até finalmente ouvir, pelo eco, que me aproximava do canto. Sacando a lanterna, vi que estava chegando numa parede. Então, avancei rapidamente por ela, esperando atingir um vértice. Mas para minha surpresa, não atingi o vértice da minha caixa e sim cheguei na parte final de uma caixa interna à minha.

Usando a técnica que eu havia desenvolvido na minha primeira visita a caixa, saquei o cinto e comecei a desferir pancadas no aço, enquanto gritava pelo nome dela.

-Maraaaaaa! Maraaaaaa! – Eu berrava, e dava pancada de tudo quanto era jeito.  Mas não recebia resposta.

Bati e gritei até cansar. Então me sentei. para descansar.

Após uns quarenta minutos de descanso na escuridão e no completo silêncio, comecei a refletir o quão idiota eu tinha sido de deixar me levar pelas emoções e ter usado a fíbula em mim mesmo. E se Leonard realmente estivesse certo? E se eu que tivesse entendido mal e ele de fato não podia voltar na caixa? Talvez, e muito provavelmente, eu tivesse me condenado a morte.

Levantei-me. Limpei o suor da testa e tornei a bater na parede de aço com o cinto. Aquilo fazia um barulhão e talvez até atraísse o Mungo, mas eu estava pouco me lixando para as consequências. Eu precisava era achar logo a Mara, e levar água e comida para ela.

-Maraaaaa! Maraaaaaa! – Eu berrava, incansável.  De vez em quando, eu cessava a barulheira para escutar, tentava apurar os ouvidos na tentativa de determinar se Mara estava vindo, lá dentro da caixa.  Eu sabia que possivelmente, Mara estaria longe de onde eu estava, e que talvez demorasse um tempo até que ela escutasse as batidas e pudesse se localizar na escuridão, vindo ao meu encontro.  Talvez até ela estivesse perto, mas muito debilitada para avançar rapidamente em minha direção, ou mesmo gritar por ajuda.  Neste caso, ela usaria alguma coisa como o sapato, para bater na caixa, me indicando que havia escutado minhas batidas.

Eu batia, gritava, assoviava o mais alto que eu podia e então escutava. Recomeçava, fazia um intervalo, descansava e retomava as batidas. Após repetir essa rotina mais de quarenta vezes, finalmente ouvi alguma coisa. Custei a conseguir determinar se eu estava ouvindo mesmo ou já era uma alucinação da caixa. Precisei forçar meus sentidos para determinar o que era o som que eu ouvia.

Eram batidas. Tipo “Pá, pá pá….” três baixas e depois três bem fortes, seguidas de três batidas baixas.

“SOS!” – Pensei. As três batidas baixas significavam os pontos e as três batidas fortes, significavam as linhas em código Morse.  Uma alegria se incendiou em meu coração. Era ela!

Retomei a gritaria empolgado. As batidas se repetiam de tempos em tempos. Então passavam-se vários minutos de silêncio. Pareciam muito distantes.

Peguei minhas tralhas e segui pela lateral da caixa interna, mantendo a lanterna na mão, apagada. Eu esperava usar a lanterna caso sentisse a presença do Mungo.

Avancei com a mão na parede de aço da caixa, seguindo sempre em frente e parando de vez em quando, para determinar, pelo som, a que distância Mara estava.

Então cheguei bem perto de onde o som parecia vir.

Peguei a fivela do cinto e comecei a bater. Eu não ia bater com a lanterna porque havia risco de quebrá-la, o que seria uma tremenda burrada.

-Maraaaa! Maraaaaaaa! – Eu gritava. E então fazia silêncio para ver se ela respondia. Mas não havia resposta. Então eu vi que as batidas subitamente pararam.

“Aconteceu alguma coisa com ela!” – Pensei. Imediatamente, a primeira coisa que passou na minha cabeça é que suas batidas contínuas poderiam ter atraído o Mungo.

Retomei a gritaria novamente, e gritei ate ficar rouco. O ar me faltava. Eu estava suando em bicas e a gosma havia se secado parcialmente, colando a minha roupa e os pêlos do corpo, o que me pinicava bastante.

Sentei no chão para descansar. Não havia nenhum barulho, somente o som da minha respiração e das reações fisiológicas do meu corpo.

Então, quando eu já começava a perder as esperanças, ouvi uma voz do outro lado da caixa.

-…Ô viado!

CONTINUA

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. Então, quando eu já começava a perder as esperanças, ouvi uma voz do outro lado da caixa.

    -…Ô viado!

    “Descobriram meu segredo” – pensou Andreson

    He he he he! Brincadeira…

  2. Cabelinho, que bom te ver cara, nossa mermão, achei que você estava… morto? É seu viado, achei que você tinha ido para o saco, batido as botas, pra quê você foi espetar a fíbula na mão seu FDP. kkkkkkkk…

  3. Kbelinho, tenho uma notícia ruim seu corpo está sendo usado por uma minhoca que fica na garganda, sacou? rs. Vc está sendo sodomizado! rs

  4. UAHUAHUAHAUHAUHAUA rachei com o final!!
    Mas esse Anderson é meio burro heim! Se eu fosse ele eu levaria uma arma (pra caso o Mungo aparacesse), C4, um monte de pilhas, se pá velas tb hahaha
    Um gerador a diesel e umas ferramentas pra cortar aço tb seriam uma boa! Já que ele levou uma maca, pq não né xD
    Ah, e muita comida e água, claro ^^

      • Pergunte a um telegrafista. Não só dá como tem um episódio hilariante de sua biografia, em que Lamartine Babo, que era telegrafista, chega nos correios. No balcão dos Correios ele foi enviar um telegrama, o telegrafista então bateu o lápis na mesa em Código Morse para seu colega: “Magro, feio e de voz fina”. Então, Lamartine tirou o seu lápis e bateu: “Magro, feio, de voz fina e ex-telegrafista”.

        Clássico, né?

        Isso é possível modulando tempo e intensidade. E é assim que os presos em minas se comunicam com as pessoas de fora.

      • Não concordo, infelizmente acho que poucas pessoas conhecem o código Morse…
        É, eu tava aqui testando, acho que dá por sons sim (falha minha! Mas preferia uma lanterna!!)
        (só corrigindo SOS = …—…)

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