A caixa – parte 2

Não sei se dormi muito ou pouco. Não dava para saber. Eu estava muito cansado, então pareceu-me a princípio, que eu havia dormido muito além do normal, porque sentia uma dor no corpo persistente. Essa dor no corpo me acompanhou por um tempo.

Novamente a estranha sensação de abrir os olhos e não ver nada. Lembro-me de acordar esperando que tudo não passasse de um pesadelo, mas tão logo abri os olhos e nada vi, me dei conta de que estava naquele lugar mesmo. Eu acordei e fiquei parado. Fiquei um longo tempo em silêncio, sem nada fazer ou pensar. A sensação de vazio se refletia em mim.

Mas então, um pensamento me ocorreu. Eu não podia ficar ali, eternamente esperando algo acontecer.

E se nada acontecesse? Eu ia morrer na escuridão?

Eu precisava fazer alguma coisa, maquinar uma saída. Tinha que haver uma porta, afinal, eu estava lá. Se eu entrei, havia alguma forma de passagem, e, eu esperava, seria por ali que eu ia dar o fora daquele lugar.

Coloquei-me de pé novamente e continuei a tatear a parede. A porta de entrada devia estar em algum dos lados. Por maior que fosse o hangar onde eu me encontrava, ele precisava ter uma porta. Estendi a mão aberta, espalhando meus dedos em leque sobre a parede gélida. Comecei minha longa caminhada, sem esquecer de contar novamente meus passos. Eu sabia que uma lateral tinha mais de três mil passos. Estava na hora de começar mentalmente a “modelar” aquele hangar. Dessa vez, comecei a perceber que eu conseguia contar mecanicamente, mantendo uma parte da minha mente reservada aos pensamentos.

Enquanto andava esfregando na parede, eu ia pensando e contando, pensando e contando… Me dei conta de que, em outra ocasião, talvez eu estivesse muito mais desesperado. Por alguma estranha razão, o meu medo de estar ali, sozinho, talvez cego, no escuro e silêncio sepulcral, vinha gradualmente diminuindo. Talvez fosse um sinal de que eu estivesse gradualmente enlouquecendo. Ou me acostumando ao cativeiro.

…Mil seiscentos e oitenta e sete, mil seiscentos e oitenta e outo, mil seiscentos e oitenta e nove…

Ainda era uma completa incógnita na minha cabeça a razão daquilo. Não me lembro de ter ido para aquele lugar, de modo que só poderia imaginar que alguém me levou e largou lá. A dor na nuca era constante,  o que me fez questionar se talvez eu não tivesse sido atingido por uma paulada, uma garrafada, coisa do tipo depois que saí do Mario. As memórias ainda estão confusas. Eu estava andando, atravessei uma rua e então não lembro mais.

…Mil setecentos e vinte dois, mil setecentos e vinte e três…

Resolvi parar de contar mentalmente e passei a contar em voz alta. A verdade é que a solidão deu uma apertada. Meus joelhos doíam. Pensei que eu estava com problemas de “junta” e ri da minha própria piadinha infame. Ao contar em voz alta eu tinha pelo menos a sensação de uma companhia. Algo para escutar, já que o silêncio era tamanho que eu ficava escutando uma espécie de chiadinho baixo o tempo todo. Meu ouvido estava acostumado a barulho, e algo que nunca imaginei que pudesse acontecer, a ausência dele me fazia sentir falta. Fiquei pensando como deve ser um saco a vida num monastério ou templo budista do Tibet onde o monge não pode nem ao menos peidar alto. tem que soltar aquela bufa silenciosa, para não perturbar os demais monges.  Mas espere… Como um monge faz para controlar o volume do peido? Será que é para isso que eles meditam tanto? Será que se um monge perder o controle de suas pregas anais e soltar um daqueles traques mais espalhafatosos, como uma salva de tiros de bazuca no reveillon, será que ele sofre alguma punição? Será que ele é expulso do templo?

– Yo Huan, você está expulso!

-Eu? Por que, mestre?

-Você peidou alto, Yo Huan! Perturbou a paz no templo! Agora o mestre Shen está fora do transe de trinta anos e até mudou de posição.

-Mas… Como sabe, mestre?

-Veja, ele está tampando o nariz.

E lá estava eu, esquecendo de contar os passos, fazendo vozes e interpretando personagens novamente. Eu tinha que parar com isso. Uma mania desgraçada que me fazia ganhar amigos, mas me provocava sempre alguns problemas, como quando eu imitava professores na escola, para deleite de meus amigos. Certa vez imitei um professor que era meio desmunhecado, e aquilo culminou em minha expulsão.

Foco. Meu problema era essa merda de falta de foco crônica. Nem na escuridão completa, no silêncio absoluto, na paz mais opressora do universo eu conseguia me concentrar em meus objetivos. Jane vivia reclamando dos seis livros que comecei e não terminei. Eu era assim, sempre vivia mudando de emprego. Um homem sem sossego. Tanto que nem com a mesma mulher eu consegui parar.

Retomei a contagem. Tentei me concentrar em busca de fendas ou ressaltos na parede. Continuei em frente.

Enquanto andava e contava eu me perguntava como alguém gastava material para fazer um lugar tão grande.

Contar linearmente era muito difícil, porque eu levava mais tempo para falar mentalmente o numero do que o passo em si, de modo que descobri um novo jeito de contar em que eu contava de cem em cem, e a cada cem passos eu esticava um dedo. Ao esticar os dez, eu havia feito mil, e podia então cruzar os dedos. Dedos cruzados valiam mil. Com este método, eu era capaz de contar correndo, afinal eu não estava com vontade de passar o resto dos meus dias naquele lugar.

Quando eu finalmente cheguei ao outro lado, me espantei. Primeiro porque não havia sentido nenhuma indicação de porta em toda aquela lateral. Segundo porque como a lateral anterior tinha dado 3567 passos, essa era sensivelmente menor, com exatos 3000 passos apenas. A parede terminava numa quina de noventa graus, que descobri e medi com a técnica do dedinho dobrado.

A princípio, não liguei para a diferença de passos, porque pensei que ou eu havia errado nas contas, ou talvez o lugar fosse assimétrico. Mas o mais provável é que como eu burramente havia feito a medida andando e correndo, o comprimento dos passos era diferente, o que produzia uma pequena discrepância a cada metro percorrido, mas que ao somar tudo, dava uma substancial diferença. Me senti meio idiota ao só perceber isso depois de percorrer tantos quilômetros.

Resignei-me. Eu precisava ser resiliente. Nesse momento eu já começava a sentir uma certa fome. Concluí que estava gastando muita energia.

Pus-me a caminho da nova lateral. Apelidei cada uma com uma letra: A, B,C,D. Segui em frente. O objetivo era cada vez mais achar a porta.

Novamente percorri a lateral com a mão esfregando na parede. Agora eu me concentrava em dar passadas precisas, com a mesma dimensão aproximada. Estava decidido que não ia mais correr. Eu precisava aprender a não ser afobado. E assim foi. Aliás, fui.

Andei incansavelmente, contando nos dedos em grupos de cem. E depois, em grupos de mil.

Eu já estava ficando habituado a andar com desenvoltura na escuridão absoluta. Eu andava com os olhos fechados, já que eles eram inúteis abertos.

Como nessa lateral, a “B”,  eu não corri, ela me pareceu assustadoramente comprida.  Quando finalmente cheguei à parede, o número de passos contabilizava três mil e duzentos.

Então aquele era um valor mais correto, vamos dizer assim. Mas ainda, nada de reentrância, caixonete, dobradiça, espaço vazio, ressalto, amassado… Nada nem material diferente, nada. Era uma parede enorme, absolutamente lisa e fria.

Pensei que talvez eu estivesse num tipo de galpão frigorífico abandonado. O que explicaria as paredes e piso metálicos.

Tive que parar para descansar. A sede vinha assoladora. A garganta queimava. Eu estava suando em bicas, apesar do lugar ser meio frio.

Encostei na equina “BC” e fiquei ali, tomando um ar, e reunindo forças para uma nova jornada rumo a esquina “CD”.

Quando eu finalmente descansei. Retomei minha jornada solitária em direção à nova parede. Mantive os passos espassados. Minhas pernas já doíam terrivelmente.

“Vou sair um atleta desse lugar” – Pensei.

Quando a quina “CD” tocou os meus dedos, eu havia contabilizado três mil duzentos e vinte e sete passos. Calculei que a lateral “C” tivesse a mesma dimensão da lateral “B”, já que esses vinte e sete passos poderiam ser a margem de erro já que medir em passos não é lá algo muito preciso. Quando cheguei na quina “CD”estava pregado. Eu quase não tinha forças. A sede era devastadora e a fome apertava mais e mais.

Na quina CD eu senti claramente o “chamado da natureza”.

Minha barriga doía e eu senti uma forte vontade de fazer cocô. Percebi que inconscientemente eu vinha com a vontade de “dar um barro” desde a lateral B, mas por alguma razão eu estava segurando.

Não pensei duas vezes. Abri a calça, arriei a cueca e me encostei junto a lateral. Foi ali mesmo. Aproveitei para fazer xixi.

Minutos depois, já aliviado, eu havia transformado a quina CD no banheiro. Difícil foi para me limpar. Tive que improvisar com o lenço, que larguei lá mesmo.

Reuni mais forças e percorri a lateral “D”, ainda tentando achar uma fresta ou indicio de porta. O que novamente não aconteceu. A lateral “D”  ia acabar na quina “DA”, mas ela custou bastante a chegar. Eu ainda contava meus passos. Quando a quina chegou, eu havia dado mais 3170 passos. Era um pouco menos, mas creditei à diferença à variação natural. Estava claro pra mim que as laterais “B”, “C” e “D”  eram todas do mesmo tamanho.

Sentei junto a quina “DA” e fiquei pensando. Eu estava obcecado com as medidas, mas a falta da porta me intrigava cada vez mais. Como tudo na vida, a maldita porta estaria na última lateral. Eu estava ali sentado quando me dei conta de que na “noite anterior”, ou sei lá quando, antes de eu dormir no canto “AB”, eu percorri 3567 passos. Por mais que eu tenha errado no método de andar e correr sem me dar conta da diferença dimensional da passada, 567 era uma diferença muito grande. Além do mais, eu não havia chegado a uma quina para começar a contagem. Comecei a contar a lateral A provavelmente em algum ponto do meio dela.

Isso talvez indicasse que essa lateral era maior. Dessa forma, se a lateral A fosse muito maior, o lugar não seria uma caixa, mas um tipo de trapézio  No entanto, como as quinas pareciam estar em noventa graus, isso seria incompatível com o trapézio. Pelo menos a esquina “DA” precisaria ter um canto mais agudo.

Fiquei chateado ao perceber que precisaria medir novamente a lateral A, para me certificar de seu tamanho correto. Aquilo era extremamente massante. Pus-me a caminho de uma nova medida de lateral. Meus dedos da mão direita já estavam ardendo de raspar nas paredes geladas daquele lugar.

Andei, andei, e à medida em que andava ia contando em voz alta.

Encontrei o canto “AB” depois de um longo tempo de caminhada. A medida correta era três mil passos.  Para ser exato, dois mil novecentos e noventa e nove e meio. Eu estava começando a ficar bem preciso nas passadas.

Aquilo confirmou minhas suspeitas geradas na medida dos cantos de que eu estava numa caixa de 3000 passos de cada lado. Como cada passo tem em média 74 centímetros, eu julguei que estava numa caixa de 2,2km, o que dava um espaço de 4,84km quadrados.  Me espantei ao me deparar com este numero em minha cabeça, já que eu não imaginava como alguém faz um vão livre desse tamanho sem colunas ou vigas.

Eu não havia encontrado a porta, de modo que suspeitei que talvez a entrada estivesse em algum ponto acima da área onde minha mão alcançava. Eu devia ter passado sob a porta sem nem me dar conta.

O silêncio sepulcral era impressionante. Comecei a ter medo, porque a sede que eu sentia ali era cada vez pior. Eu sabia que se não conseguisse sair daquele lugar, ia acabar morrendo.

Retomei a opção de gritar por socorro. Gritei, gritei, até ficar sem voz.

Comecei a desferir chutes nas paredes, em busca de atrair a atenção. Fiz isso e gritei por socorro. Senti o desconforto crescente dentro de mim. Eu estava ficando desesperado. Foi assim até eu perder as forças. Sentei no canto e chorei. Eu estava muito cansado e acabei dormindo.

Acordei com um estrondo surdo que ecoou nos meus ouvidos.

-Que porra é essa? – Levantei assustado. Não se via nada. O silêncio parecia perene. Eu cheguei a ficar na duvida se o som que parecia até uma explosão era minha imaginação, sonho ou delírio.

CONTINUA

 

 

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.
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Comentários

  1. Será delírio ou realmente aconteceu? Deve dar uma agonia grande mesmo estar num lugar que não se sabe onde é, com uma escuridão tão densa e com um maldito silêncio intimidador. Já estava com saudade dos contos, apesar de Estranha Obsessão ter sido publicada a pouco tempo atrás. Ótimo conto esse, louco para ler a parte 3

  2. Ei philipe, será que vc poderia colocar os links das continuações dos contos no final de cada um, como era antes do blog mudar?

    Facilitaria um bocado :)

  3. Me vi nesse trecho:

    “Foco. Meu problema era essa merda de falta de foco crônica. Nem na escuridão completa, no silêncio absoluto, na paz mais opressora do universo eu conseguia me concentrar em meus objetivos. Jane vivia reclamando dos seis livros que comecei e não terminei. Eu era assim, sempre vivia mudando de emprego. Um homem sem sossego.”

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