A caixa – parte 15

Eu não disse nada.

Apenas saquei do bolso a foto do seu Alfredo e joguei na mesa. Cabelinho pegou e olhou pra minha cara sem entender.

-Que isso?

-É ele, cara.

-O velho?

-Isso mesmo.

-Mas… Como assim? Como você achou ele?

-Eu sabia a cidade dele, porque ele me falou lá na caixa. Fui atrás e investiguei até achar. – Eu disse. Cabelinho sentou com a foto na mão.

-E ele tá vivo?

-Não. Morreu.

-Cara, não é possível…

-Também acho, Cabelinho, mas como que você explica isso aí na sua mão? E a Mara? E o guru?

-Não sei. Isso tudo é… Muito doido. E veja, ele parece mesmo o Jaques Custeau meio gordo. Bem como você descreveu.

-Tô te dizendo, eu estive com este homem antes dele morrer, mas sei lá, não aqui.

-Mas, e essa caixa? Onde é isso?

-Não sei. Um lugar nem aqui, nem lá… – Eu disse, meio sem saber as melhores palavras para explicar o que eu sentia. Para meu espanto, Cabelinho emendou a minha frase com uma surpreendente verve poética:

-…Há uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo Homem. É uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos temores do Homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da fantasia. Uma região Além da Imaginação. – Ele disse, sorrindo com a foto do velho nas mãos.

-Hã? – Eu fiquei bolado.

-É a frase de abertura daquela série, tá ligado? Além da Imaginação. Eu pirava nessa série do Rod Serling. – Ele disse.

Eu mal podia acreditar que alguém conseguisse guardar uma frase tão grande na memória após tanto tempo. Ainda mais com tanto THC nos miolos. Eu me lembrava da série, mas muito vagamente. O Cabelinho de vez em quando surpreendia com sua erudição, tão inesperada que parecia não encaixar nele. Mas era engraçado que a minha experiência na caixa, à aquela altura, realmente me parecia mais um episódio de Além da Imaginação do que realidade.

-Bom, e o que vamos fazer? – Perguntou ele.

-Não sei. Quero ir lá ver a Mara. Será que á minha Mara?

-Minha? – Ele disse sorrindo, enquanto fazia um coração de mãozinha.

-Modo de dizer, mané. – Eu disse, dando um tapa no coração de mãozinha dele.

-Xonaaaaaado! – Ele murmurou para me irritar.

-Vou dormir, meu. – Eu disse, indo para o quarto. Deixei Cabelinho rindo de mim na cozinha.

Pra variar, eu não pregava o olho. Meus pensamentos estavam todos em Mara. O que teria acontecido com ela na caixa? Estava quase amanhecendo quando consegui tirar um cochilo, sem sonhos, vítima do cansaço.

Quando o celular despertou sobre o criado mudo, eu mal tinha forças para me levantar da cama. Levantei minha carcaça escovei os dentes, e fui até a cozinha fazer um café solúvel.

Eu estava tomando café comendo uns cream crackers quando o Cabelinho apareceu na porta.

-Bora lá?

-Lá onde?

-No hospital, porra!

-Eu, eu não sei. Tenho que ir pra redação. – Eu estava hesitante. Tinha medo de chegar lá e descobrir que a Mara em coma era a Mara da caixa.

-Vamos que te deixo lá, no caminho pra Universidade. A gente passa no hospital, você dá uma olhada e a gente segue. – Ele disse. Eu não tinha argumentos para evitar, então, aceitei.

Minutos depois estávamos no táxi seguindo em direção ao hospital. Cabelinho ia na frente, lendo num guardanapo as indicações dadas pela tal Cíntia. Ela havia passado o endereço certinho e numero do quarto.

-O quarto dela é o 515 ou 512, essa letra aqui está um garrancho do caralho. – Cabelinho me mostrou o papel. A escrita parecia egípcia de tão ruim de ler.

-Nota-se que quem escreveu isso estava doidão. – Eu disse. Ele e o taxista riram.

Minutos depois, chegávamos ao hospital. Após cabelinho “desenrolar” nossa entrada como visitantes, na recepção do hospital, e confirmar que o quarto era na verdade o 215, fomos direto pra lá.

Chegando no quarto, ao fim do longo corredor hospitalar de paredes brancas com uma faixa verde-água de fórmica no meio, encontramos a porta fechada. Parei ali e hesitei novamente.

-Travou? -Cabelinho perguntou. Eu estava tremendo.

-É que… E se não for ela?- Perguntei.

-Só tem um jeito de saber, meu chapa. – Ele falou, metendo a mão na maçaneta e então abriu a porta.

O quarto estava na penumbra. Imediatamente quando entrei, não tinha ninguém no leito hospitalar. Mas o quarto não estava vazio. Assim que entramos, um homem enorme, parrudo, vestindo uma camisa jeans, com barba branca e cabelo grisalho, aparentando uns sessenta anos se levantou. Ele estava no sofazinho, ao lado da cama. Como Cabelinho entrou na frente, o homem levou um susto com a aparência de mendigo do meu amigo.

-Quem são vocês? – Ele perguntou com ar de estranhamento.

-Nós? Nós é… Fala pra ele. – Disse cabelinho, me dando uma cotovelada.

-Nós somos amigos da Mara. – Eu falei.

-Ah. Ele disse, e sentou novamente.

Eu olhei para a cama vazia desolado. Eu sabia o que aquilo significava. Ela não conseguiu. Havia sido morta pelo Mungo.

-E cadê ela? – Perguntou o Cabelinho ao homem.

-O homem olhou pra nós e disse:

-Ela já volta. Os médicos a levaram para fazer uma nova tomografia.

Aquilo me deu um alivio desgraçado, mas eu ainda estava tenso, não sabia quem era aquele sujeito, e nem se a Mara era a mesma.

-O senhor é o…

-Stênio. – Sou o pai da Mara. – Ele disse, apertando a minha mão.

-Muito prazer, seu Stênio. Eu sou o Anderson. Esse é o Marcos, mas todo mundo chama ele de Cabelinho.

-Nós só ficamos sabendo ontem. – Disse o Cabelinho enquanto apertava a mão do pai de Mara.

-Pois é. – Ele respondeu. – Foi tudo muito rápido. Não deu pra avisar todo mundo.

-Foi a Pricila que contou.

-Sei. Ela estava no carro no dia do acidente. Escapou ilesa. Dizem que foi milagre. Os socorristas disseram que foi milagre a Mara escapar também… Mas pelo menos a Priscila acordou do trauma. Já a minha filha…

-Confie em Deus, seu Stênio. – Disse Cabelinho dando uns tapinhas no ombro do homem. Eu até me espantei com aquela frase do meu amigo. Ele que era ateu até debaixo d´água…

-E as outras pessoas do carro? – Perguntei.

-Viraram carne moída. – Ele disse, tentando disfarçar uma lágrima teimosa que queria escorrer. -Vocês não tem noção do que foi o acidente.

O homem se levantou e abriu a janela.

-Seu Stênio, desculpa perguntar, mas tem quantos dias que ela está em coma? – Perguntei.

Ele me disse sem pestanejar:

-Vinte e sete.

Eu sabia que o tempo no mundo não era igual ao tempo na caixa. Tive uma vontade enorme de contar a ele que havia estado com a filha dele na caixa, mas ele pensaria que eu era um maluco, que estava curtindo com a cara dele…

-Mas de onde que vocês conhecem a Mara mesmo? – Ele perguntou.

Eu não sabia o que dizer. O Cabelinho olhou pra minha cara com uma expressão de “vai contar?”

-Nós estivemos juntos… – Eu disse, meio encabulado, tentando achar as palavras certas. Mas nisso, deu um barulho na porta e ela se abriu. Dois maqueiros traziam Mara.

-Meu Deus! É ela! – Eu não consegui me conter.

Ela estava bem machucada ainda. O rosto estava repleto de hematomas escuros, decorrentes do acidente. Lembrei do rosto dela na caixa. Era perfeito, lindo, na caixa.

Enquanto os dois maqueiros, eu e o pai dela puxávamos o lençol emparelhado com a cama, afim de colocar Mara no leito, Cabelinho perguntou:

-Ela ficou bem machucada, né seu Stênio?

-É sim, mas é como eu disse a vocês. Foi um milagre sair viva. Vocês tinham que ver o carro. Virou uma maçaroca de aço e cacos de vidro.

Os maqueiros saíram e entrou a enfermeira. Ela colocou uma bolsa de soro na via presa ao braço de Mara, posicionou ele. Ela parecia dormindo, seu rosto exalava paz, apesar dos hematomas. A enfermeira regulou o fluxo de soro e saiu.

-E o estado dela, seu Stênio? – Perguntou o Cabelinho. Acho que vendo que eu estava mais preocupado com ela na cama do que qualquer outra coisa, ele se encarregou de fazer as perguntas.

-Está estável desde o primeiro dia.

-Não tem previsão para ela sair do coma?

-Não. O médico disse que ela pode acordar a qualquer momento, mas ele foi sincero com a gente. Disse que tem casos de coma natural assim que podem durar mais de trinta anos. A pessoa vai em coma até a morte. Ela vai ficar aqui no hospital até terminar a bateria de exames, depois, iremos montar uma estrutura lá em casa e levaremos pra casa, onde será mais confortável para todos.

O homem sentou-se no sofá e ficou ali, velando a filha. Eu estava em transe, com os olhos fixos nela.

Mesmo machucada ela era lindíssima. Mesmo machucada ela parecia uma princesa. Cabelinho bateu no meu ombro de leve e apontou o relógio. Olhei a hora e já estava atrasado. Nos despedimos do seu Stênio, fomos embora.

No elevador, enquanto descíamos para o térreo, ele perguntou:

-E agora mané?

-Não sei. – Eu disse.

-Cara isso é muito louco. Muito louco. Ninguém vai acreditar…

-Você não tá pensando em contar isso pra alguém né seu pirado?

-Relaxa, Anderson. Não ia adiantar. Ninguém ia acreditar nisso.

Nos despedimos na calçada do hospital. Cabelinho seguiu para a a Universidade no Taxi e eu peguei um ônibus para a redação.

Quando cheguei na redação, encontrei a Monique, a secretária, que me disse que minha mãe tinha ligado lá de Portugal.

-Você não falou nada pra ela, né?

-Não, claro. Ela não sabe de nada. – Respondeu a Monique.

Peguei o telefone da minha mesa e liguei.

-Quem está? – Era a voz da minha mãe.

-Oi Mãe.

-Ò teu puto dos infernos! Onde andaste que não te acho em lugar nenhum?

-Eu estava… Viajando, mãe. – Eu disse. Eu escondi o meu acidente da minha mãe. Mas com as últimas investigações e pesquisas, havia esquecido das minhas ligações periódicas para ela. Minha mãe estava totalmente preocupada comigo.

-Tive um problema na casa. Precisei chamar o picheleiro às pressas para consertar. – Minha mãe e seus problemas domésticos. Era quase sempre esse nosso assunto. Ela começava contando dos problemas na casa, depois suas doenças, aí me fazia um monte de recomendações e dizia que estava com saudades. A galera da redação achava legal quando eu ligava pra ela de lá, porque eu falava com sotaque português e todo mundo achava engraçado. Era natural pra mim e eu mal percebia que fazia isso.

-Tive um pesadelo com você esses dias, meu filho. -Ela disse. Mas eu cortei o assunto. O sexto sentido da minha mãe era impressionante.

-Mãe, conheci uma gaja.

-E que tal? É bonita? Como se chama? É do Brasil? – Minha mãe e sua turbina de um milhão de perguntas. Contei a ela de Mara. Disse que estava com ela quando ela sofreu um acidente, e que estava internada, em coma.

-Pobrezinha. Vou rezar por ela, Anderson.

Nos despedimos. Minha mãe fez mais mil recomendações, nos despedimos mais duas vezes e finalmente desligamos. Eu sentia saudades da minha mãe. Estava juntando dinheiro para ir em Portugal para vê-la. Mas a vida no Brasil era muito corrida e eu havia desistido de ir várias vezes.

Durante o expediente, trabalhei no texto do centro de Yoga. Mas era difícil me concentrar pensando em Mara presa na caixa. Ela estava sozinha, com frio, no escuro… E o Mungo? Mil pensamentos ruins rondavam minha cabeça.

As horas custavam a passar. Com o meu artigo atrasado, nem almocei. Comi lá mesmo, um sanduba frio com suco de caju enquanto escrevia.

Quando o relógio finalmente bateu cinco e meia, fui embora. Peguei o metrô como sempre fazia. Lotado.

Encostei minha cabeça no vidro. Mara ainda estava nos meus pensamentos, quando fechei os olhos. Sentia o balancinho do metrô. Ouvia o som do metal raspando e a falação das pessoas.

Então as vozes sumiram. O balancinho parou, e eu abri os olhos e não vi nada. Tudo escuro.

-Puta que pariu!

CONTINUA

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Philipe Kling David
Philipe Kling Davidhttps://www.philipekling.com
Artista, escritor, formado em Psicologia e interessado em assuntos estranhos e curiosos.

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Comentários

  1. A questao, agora, eh a seguinte, se o Anderson tiver voltado para a caixa, pode ser que a caixa onde ele se encontrar nao seja imediatamente posterios a caixa da Mara. Vai que seja duas caixas apos? Ou tres? Ou quatro? e vai que na caixa proxima a dele, ele encontre outra gata?

  2. Pô Philipe, fiquei o final de semana inteiro ” velando ” o Mundo Gump para ler a parte 15, rsrsrs

    Pelamordedeus, a parte 16 sai amanhã, né?

    Diz que sim, diz que sim!!!!

    Tá demais!!!

    Vamos ver se desta vez ele levou o celular, pelo menos, rsrsrs

  3. Caramba, Philipe! Sensacional!!!
    Eu achei que a história iria acabar mas você conseguiu reviver de uma forma espetacular…

    Por favor cara, se possível ajude esses pobres coitados como eu e poste logo a próxima parte hahaha

    Abração!

  4. Ó Philipe, vê se não maltrata a ansiedade dos seus leitores hein, estamos aguardando a parte 16.
    Ih rapá, mais uma vez na caixa? Se fosse eu, pirava.

  5. Mas quem disse que o Anderson saiu da caixa? quem me garente que tudo isso nao foi uma alucinacao ? do poste dos infernos, para mim ele nao sabe o que foi real ou nao, entao vai ficar cabreiro para saber se realmente saiu… vai tentar provar para a Mara que saiu e vamos ver no que o Philipe vai nos meter… heheheh da hora…

    Ps, ele nao cometeria esse erro de mandar o Anderson para a mesma caixa em um outro acidente… ficaria sem logica

  6. HAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!! ATÉ QUE ENFIM!….. MAS SOU EU DESTA VEZ QUE DEMOREI A LER! ESTIVE MUITO OCUPADO TBM! MAS ESTÁ SENSACIONAL!!!….(COMO SEMPRE)!

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